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A trialidade de gêneros dos Guna Yalas
Sociedade matriarcal Guna Yala ensina sobre diversidade e tolerância. Na foto, Mara Carneiro entrevista uma representante da nação Guna Yala, Iguandili Lopez, na cidade do Panamá (Foto: André Mafra)
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Diversidade é daqueles assuntos que vieram para ficar. No alvorecer das primeiras décadas dos anos 2000, sinto que não haverá ganho de civilidade enquanto não trazermos o tema para as nossas vidas, desde o ambiente profissional até a intimidade das paredes da nossa casa.

Travar contato com sociedades matriarcais é uma excelente maneira de conhecer uma modelo social que analisa o tema com olhos muito particulares.

Na coluna passada, mais que ilhas paradisíacas, San Blas tem cultura forte e inspiradora, fiz uma introdução ao povo Guna Yala, que vive no Panamá, e que pode ser uma excelente fonte de inspiração para nossas vidas.

De forte tradição e cultura, os Guna Yalas devem ser exaltados como fonte de inspiração para nos ajudar a criar um mundo mais respeitoso, tolerante e diverso.

Diversidade e tolerância na cultura Guna Yala

Na cultura Guna Yala, existe o conceito da trialidade, que segundo Diguar Sapi¹, marido de Iguandili López, existe a mulher, o homem e wigudum.

Segundo ele, não há problemas de gênero em sua cultura, já que o conceito de dualidade foi trazido de fora, imposto através de conceitos e dogmas religiosos.

“Cabe a nós apenas respeitar o que é posição da mulher, do homem e do wigudum na sociedade.” Ou seja, percebe-se que, como o conceito de trialidade existe no mítico, ele se reflete na vida real gerando tolerância, aceitação e naturalidade nas relações entre as pessoas.

Veja mais na Série Documental, Gunayalas, um matriarcado no Panamá, Episódio 3

Alguns poucos meses antes de embarcamos para nossa primeira visita à comarca Gunayala, marcamos uma conversa, no centro de São Paulo, com o antropólogo Diego Dias, cujo a extraordinária pesquisa acadêmica sobre os gunayalas está na internet². Nosso encontro foi ótimo e dele saímos com muitas dicas e com o contato de Yineth Layesvska, que por fim virou nossa amiga.

Ao chegarmos na cidade do Panamá, após o encontro do primeiro dia com Dialys Ehrman, conhecemos Yineth Layesvska Muñoz, que nos recebeu na capital do país.

Muito gentil, Yineth ao final de nossa jornada nas ilhas, se encontrou com o nosso grupo mais uma vez. Ela pacientemente topou tirar-nos dúvidas sobre a cultura kuna e a cultura wiguduns.

A trialidade de gêneros

Na cosmogonia gunayala, a criação e o advento da cultura e tradição kuna advém de uma tríade composta de três irmãos: Ibeorgun, Giggadiryai e Wigudun. Os três representam o princípio masculino, o feminino e um terceiro gênero.

Antes da chegada dessas entidades, havia uma mistura de raças não definidas, dispersas. Então Ibeorgun aparece e assume a função de um mestre, aquele que chega para ensinar costumes e alertar para os perigos da floresta.

Já Giggadiryai chega para orientar a conduta e tarefas das mulheres e a condução de seus ritos de iniciação. Uma curiosidade que consta na tradição é que Giggadiryai chegou ainda muito jovem, antes mesmo de sua menarca.

Com a aparição de Ibeorgun e Giggadiryai sobre a Terra, os guanaylas poderiam existir e se desenvolver, tudo estava pronto, mas faltava a figura de Wigudun.

Sua chegada ficou marcada pelo acréscimo da festa, da celebração³, da felicidade que Wigudum representa e encanta, resumindo a alegria de viver. Em uma linguagem mais formal, trata-se de um personagem representativo da ambivalência e da conjunção de gênero, da cultura kuna.

Cartaz de refrigerante na Comarca Gunayala, Panamá, foto do autor

Cartaz de refrigerante na Comarca Gunayala, Panamá (Foto do autor)

Yineth Layesvska conta sua experiência com o preconceito no Brasil

Yineth Layesvska nos conta que nasceu na comunidade Uggubseni, cujo nome espanhol é Playón Chico, um dos principais redutos da resistência gunayala nos tempos da revolução. Aos 8 anos, migrou com seus pais de sua comunidade na comarca para a cidade do Panamá, onde vive até hoje.

Naquele ano (2019), presidia a Asociación Wigudun Galu de mulheres e indígenas trans do Panamá, atuando como ativista de direitos humanos por mais de 8 anos. Nos conta com orgulho que está filiada à Asociación Panamenha de Personas Trans (Appt), onde trabalha com orientadora na área de saúde.

Yineth comenta de uma viagem para o Brasil e sobre o que viu da cidade onde eu moro, São Paulo. Quando veio como convidada para seminários na Universidade de São Paulo, o que lhe chamou a atenção ainda hoje mexe com minhas emoções.

Yineth relata sua relação com os seus e me explica que na família dos gunayalas quando há um casamento, é o esposo quem vai viver na casa da família da mulher. E à minha pergunta respondeu que sim, que não haveria problema em levar seu futuro esposo a morar com seus pais embaixo do mesmo teto.

Aquilo que é básico na cultura kuna parece um avanço, que acredito que ainda necessite de décadas para ter esse acolhimento. Segundo Yineth, uma das coisas que mais lhe surpreendeu em São Paulo foi conhecer outras pessoas trans que, para viver e ter o direito de serem quem elas são, tiveram que romper com suas famílias. Algo, em geral,  doloroso e drástico.

O olhar de culturas nas quais as mulheres possuem uma posição de destaque parece indicar uma maior tolerância, capacidade de acolhimento e inclusão.

Minha lição é que precisamos mudar o nosso olhar e entender que temos muito o que aprender. Em muitos aspectos, estamos há séculos de distância de culturas como a Guna Yala.

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¹ Digua carinhosamente nos recebeu em sua casa na cidade do Panamá e nos deu uma belíssima entrevista.

² Acesse o excelente trabalho de Diego Dias em academia.edu.

³Segundo Diego Dias em seu artigo Entre a infância e o sonho: pedagogia guna da autonomia (Panamá), ressalta que o wigudun veio para fazer a festa, para tomar seco [destilado de cana panamenho], para tomar inna [chicha fuerte]: madun inna, gai inna [chicha de madun, chicha de cana].

4 Conceito retirado do site da comunidade Wigudum Galu.

5 O termo Galu segundo o site pode ser definido com um espaço arquitetônico fechado, sagrado, onde vivem animais e outros seres vivos que não podem ser molestados. Na linguagem do cotidiano pode trata-se de uma parede feita de bambu (caña blanca) de uma casa kuna. Também pode expressar o conceito de agrupamento ou coletividade.


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