A paz está proibida no Brasil
Uma reflexão sobre as lutas pela paz no Brasil, o desconforto de assuntos proibidos e o privilégio de poder se indignar.
É importante que entendamos que poder sentir leveza e paz num país como o Brasil, é privilégio. Não deveria, por ser apenas uma necessidade humana, mas é.
Para exemplificar isso claramente, quero trazer algo que acontece todas as vezes em que eu falo de assuntos políticos. O que é inevitável, já que eles atravessam nossa vida diária e estruturam a nossa maneira de viver seja, através da opressão, seja através da tradição. Nas minhas redes sociais — que levam o nome de “Educação para a Paz — eu recebo críticas de que deveria ser mais “da paz”. E não se trata da maneira de colocar os assuntos em pauta. Trata-se da crença de que certos assuntos teriam o potencial de trazer desconfortos e, por isso, não deveriam ser mencionados.
Paz seleta, é paz?
E eu sempre pergunto: existe realmente paz individual? Uma paz seleta é realmente paz? Dá para viver bem de verdade, sabendo que metade da população brasileira está em insegurança alimentar, sem rede de esgoto e que na escola dos seus filhos não há papel higiênico? Que metade da população é devastada pelo racismo diariamente? E que metade da população sente medo de ser morta e estuprada tanto ao sair na rua quanto dentro de casa? Ou por se relacionar com pessoas do mesmo sexo? Isso tem o nome de paz ou é negação, olhos fechados, não-é-comigo, privilégio?
Paz não existe sem justiça. E justiça não se estrutura socialmente sem causar, no mínimo, o desconforto em quem está no topo dessa pirâmide. Nem estou falando de uma revolução, mas do começo da tomada de consciência que o desconforto traz. Não há paz sem desconforto. Sem dar nome aos bois. Consciência de classe, gênero e raça é uma questão de sobrevivência para quem não nasceu cercado dos privilégios branco-patriarcais. Por fim, a indignação é uma voz que não pode— nem deve— ser calada. Porque como diz o incrível Falcão, paz sem voz é medo. Deixo vocês com o provocativo conto de Marcelino Freire, intitulado Da Paz.
“Eu não sou da paz.
Não sou mesmo não, não sou. Paz é coisa de rico. Não visto camiseta nenhuma, não, senhor. E não solto pomba nenhuma, não, senhor. Por isso, não venha me pedir para eu chorar mais. Secou. A paz é uma desgraça. Uma desgraça.
Carregar essa rosa. Boba na mão. Nada a ver. Vou não. Não vou fazer essa cara. Chapada. Não vou rezar. Eu é que não vou tomar a praça. Nessa multidão, a paz não resolve nada. Marcha. Para onde marcha? A paz fica bonita na televisão. Viu aquele ator?
Se quiser, vá você, diacho. Eu é que não vou. Atirar uma lágrima. A paz é muito organizada. Muito certinha, tadinha, a paz tem hora marcada. Vem governador participar. E prefeito, senador. E até jogador. Vou não.
Não vou.
A paz é perda de tempo. E o tanto que eu tenho para fazer hoje. Arroz e feijão. Sem contar a costura. Meu juízo não está bom, a paz me deixa doente. Sabe como é? Sem disposição. Sinto muito, sinto. A paz não vai estragar o meu domingo.
Ela nunca vem aqui, no pedaço. Reparou? Fica lá. Está vendo? Um bando de gente. Dentro dessa fila demente. A paz é muito chata, uma bosta. Não fede nem cheira. Parece brincadeira. É coisa de criança. Taí uma coisa que eu não gosto: esperança. A paz é muito falsa, é uma senhora que nunca olhou na minha cara. Sabe a madame? A paz não mora no meu tanque. E a paz é muito branca, é pálida, precisa de sangue.
Já disse. Não quero.
Não vou a nenhum passeio, a nenhuma passeata. E não saio, não movo uma palha. Nem morta, nem que a paz venha aqui bater na minha porta. Eu não abro, não deixo entrar. A paz está proibida. Ela só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida. Viu? Agora é que a cidade se organiza. Para salvar a pele de quem? A minha é que não é. Rezar nesse inferno eu já rezo. Amém. Eu é que não vou acompanhar andor de ninguém. Não vou.
Sabe de uma coisa: eles que se lasquem. É. Eles que caminhem. A tarde inteira. Porque eu já cansei. Eu não tenho mais paciência. Não tenho. A paz parece que está rindo de mim. Reparou? Com todos os terços. Com todos os nervos. Dentes estridentes. Reparou?
Vou fazer mais o quê, hein?
Quem vai ressuscitar meu filho, o Joaquim? Eu é que não vou levar a foto do menino para ficar exibindo lá embaixo. Carregando na avenida a minha ferida. Marchar não vou, ao lado de polícia. Toda vez que vejo a foto do Joaquim, dá um nó. Saudade. Sabe?
Uma dor na vista. Um cisco no peito. Sem fim. Ai que dor! Dor. Dor.
Dor. A minha vontade é sair gritando. Urrando. Soltando tiro. Juro. Meu Jesus! Matando todo mundo. É. Todo mundo. Eu matava, pode ter certeza. A paz é que é culpada. Sabe, não sabe? A paz é que não deixa”.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login