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A escrita é uma forma de se relacionar com o divino
A escrita é um exercício libertador para quem se identifica com essa arte (Foto: Thought Catalog/Unsplash)
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Neste artigo:

Estou deitada no chão acarpetado. Devo ter entre 7 e 8 anos. Encaixo meu corpo de menina de uma forma que a cabeça fica embaixo da mesa de cabeceira entre duas camas.

Converso com Deus. Um diálogo silencioso. Um vasculhar por respostas, sentido, escuta. Uma garotinha trancada em si. Inquieta pelas ausências.

Sempre esperei por uma resposta. Algo que me tirasse da solidão. O fardo de ser uma criança que não conseguia se mistu­rar com as outras.

A herança de construir uma versão de si para agradar ao outro. Para ser aceita. Para ser alguém. Ainda na sombra. Sobrevivendo pelas frestas. Respi­rando para encontrar seu sol.

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Escrever me liberta

Sendo assim, percebo que, ao escrever, ainda sigo con­versando. Não sou mais a menina deitada no chão com os olhos voltados para o fundo da mesa de cabeceira.

Sou, portanto uma mulher que escreve. Alguém que flerta com Deus pela escrita, pelas palavras empunhadas. No amparo que as letras provocam existe um grito ecoando. Ele se esgueira pelos cantos, amplifica, res­soa.

A potência da trilha percorrida pelas composições escritas não me assusta. Contudo pro­duz, estranhamente, conforto. O sopro sua­ve de quem se acostumou à dureza do chão.

A poeta Adélia Prado acredita que o texto é uma forma de se relacionar com o divino. A escrita é um estado poético atingido por quem se dedica à labuta de compor a própria vida com a união entre as vogais e as consoantes.

Dessa forma, ao escrever, me exponho. E, ao ter minhas palavras retiradas de falsas vestes, me coloco diante de quem? De mim.

Ao longo da vida, repetidas vezes, me co­loquei embaixo da mesma mesa de cabe­ceira. Sentada no chão gélido do banheiro. Deitada na cama afundada em travessei­ros. Caminhando sem horizonte pela rua cercada por rostos desconhecidos. No sofámacio e inerte da sala… do analista… da casa vazia.

Escrita é travessia luminosa

Quando entendi que a escrita era a travessia, minhas conversas escapu­liram do vazio. Firmaram-se, enfim, nas palavras cravadas em superfícies planas e justas.

Não sou mais a menina no chão encaixada abaixo da mesa. Acuada. Solitária. Assusta­da. Dividida. Confusa. Tenho agora as pa­lavras. Companheiras de diálogos espalha­dos, feito vento que antecede a chuva.

Ora redemoinho, ora brisa de verão. Leva. Faz voar. Limpa. Baila. Tira do eixo. Não pede licença. Sussurra. Sacode. Embriaga. Re­fresca. Descabela. Movimenta. O texto, ago­ra sei, carrega o que tenho de mais divino. Um estado poético chamado alma.

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Conteúdo publicado originalmente na Edição 270 da Vida Simples

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