A difícil arte de lidar com as pequenas agressões diárias
Como podemos cultivar a gentileza nas relações para vivermos coletivamente com mais harmonia
Nunca entendi a agressividade. Como explicar que o sociável homem — que se isolado à nascença, nunca se torna humano – pode ser na convivência com os outros, hostil e, por vezes, selvagem? A agressividade é assumida como parte integrante do nosso instinto — o de sobrevivência — e pouco há o que fazer. Não nos espantamos com a guerra (vai sempre existir!), o crime (é um efeito colateral da vida comunitária!). À parte da violência urbana — um grave problema onde o Brasil comporta números alarmantes — o que me custa mesmo a aguentar são as pequenas agressões do dia a dia. Os ódios em filas de supermercados, no trânsito; a fúria instantânea por um simples equivoco ou mal-entendido.
Sabendo que é parte da nossa animalidade, interessei-me pelo livro A Agressão do etólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989). Apesar da obra abordar a agressividade entre os animais, o autor faz paralelos com as agressões humanas. Isto porque todas as violências praticadas pelo homem, existem igualmente na natureza. É um consolo: o homem pratica todos os tipos de agressões de todas as outras espécies.
O ódio entre familiares e vizinhos que dividem o mesmo espaço (e a mesma cultura) são os mesmos dos adoráveis e contemplativos peixinhos azuis. Num aquário eles descarregam a sua agressividade no parente mais próximo. Não tem um parente? Serve outra espécie de cor semelhante que esteja nas proximidades. A agressão é constante e muitas vezes resulta na morte do agredido. A infelizmente banal violência doméstica? Várias espécies tem como característica a violência do macho contra a fêmea. No galinheiro, o galo — apesar do seu aspecto sedutor — não se inibe de bicar furiosamente a sua favorita.
O que fazer? Qual é a recomendação da filosofia? Como não há solução à vista, os estoicos recomendam compreensão e aceitação. Nós e os agressivos estamos no mesmo barco. Mesmo as pessoas mais intratáveis e sem autodomínio podem ser como nós. Pessoas que estão lutando contra frustrações e doenças. Ao reconhecer isto, fica mais fácil relevar.
E mais do que isso, faz-nos tolerar a nós próprios porque nos ajuda a reconhecer o outro em nós. Spinoza recomenda não rir, nem chorar, nem detestar a agressão, mas entendê-la. E sobretudo não encarar a agressão como um defeito, mas como uma propriedade da natureza humana, um impulso que o seu portador não domina.
Como é de se esperar, tento praticar o que ensina a filosofia. Na minha vida de todos os dias, procuro compreender e tolerar. Num passado recente tive alguns problemas no estacionamento da escola do meu filho. Talvez porque esteja sob a égide de regras de uma cultura que ainda não apreendi, não consigo entender a ética em vigor.
Não há lugares para todos e a solução para quem não quer estar às voltas — e gerar mais confusão — procurando um lugar para estacionar por escassos cinco minutos (o tempo máximo percorrido do estacionamento até a sala de aula mais distante) é uma possível fila dupla. Estive algumas vezes na condição de ter a saída do meu carro impedida. E, nessas vezes, esperei os tais cinco minutos. A pessoa chegava, fazia um aceno desajeitado com a mão, eu retribuía com um aceno de cabeça e lá íamos à nossa vida.
Um dia chegou a minha vez de utilizar a fila dupla. Quando volto, está a minha espera um senhor visivelmente zangado. Noto que sua tez rosada passa para o tom vermelho e peço desculpas.
— Desculpa? Ainda tem a coragem de pedir desculpas?! Estou aqui à sua espera, atrasado para o meu trabalho…
Fiquei em alerta. Olhei aquela figura colérica, acima do peso, vislumbrei as suas análises clínicas e temi um enfarte do miocárdio ali mesmo. Preocupada, tentei acalmá-lo. Argumentei que aquele estado poderia lhe fazer mal. O senhor rosado — que havia passado para o vermelho — agora estava roxo beliscão (ah Lorenz, um camaleão). Pensei: é agora. Ele vai cair duro. Não caiu. Saiu disparado para o carro e partiu (estava mesmo atrasado).
Refleti longamente sobre o sucedido e cheguei a conclusão de que eu tive azar, aquele senhor devia estar passando por dificuldades… Esqueci o episódio e voltei à minha rotina. Parava o carro, esperava, acenava, parava, esperava, acenava.
Um dia fui novamente para a fila dupla e quando cheguei fiz como todos faziam comigo, acenei e ouvi: “você acha que eu não tenho o que fazer para ficar aqui a sua espera? Você acha isso certo?”. Balbuciei que deveríamos ser mais tolerantes porque não havia estacionamento para todos e entrei no carro com taquicardia. Além da fuga de uma discussão inútil, não queria que ele estivesse mais tempo à minha espera. Eis que o cavalheiro abre a porta do meu carro e dispara:
— E nem pede desculpas?
E depois fechou a porta com violência.
Fiquei perplexa. Então o outro indignou-se com o pedido de desculpas e este mostra a mesma indignação por eu não ter pedido desculpas? Afinal, peço ou não desculpas? E a regra em vigor do aceno? Meus pensamentos foram interrompidos pelo eco do presente imediato: o som da pancada da porta fechada atingiu o meu cérebro e senti todo o meu corpo inundado em adrenalina. Era a fúria… neste caso, a minha. Sai do carro e avancei em direção ao sujeito preparada para o confronto e pensei que deveria dizer algo terrível e definitivo. Mas como a tragédia e a comédia andam juntas, confesso que a única coisa que passou pela minha cabeça foi “pode vir que eu luto capoeira… paranauê… ♫ paranauê…♬”…
Não foi necessário. O senhor olhou para mim como se eu fosse um fantasma. Abriu muito os olhos, o queixo caiu. Entrou rápido no carro e partiu. Não entendi nada. Seria a minha postura muito feroz? Seriam os meus ameaçadores 50 quilos? Sigo sem compreender. Nem os mecanismos da agressividade, nem a ética do estacionamento. Em ambos procuro ficar longe do fogo: nunca mais parei na fila dupla. E quando tenho que esperar, espero, retribuo o aceno, entro no carro e vou à minha vida.
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