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A culpa é minha?
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Tem um sentimentozinho que teima em aparecer às vezes, e fica revirando em meu peito como um computador procurando conexão, causando um mal-estar sem sentido. Estou falando do sentimento de culpa. Volta e meia percebo que sou visitado por esse hóspede emocional indesejado que, pela lógica, não devia vir, pois não foi convidado. Só que ele chega de repente, ocupa os espaços e incomoda. E o pior não é o incômodo que causa, aquela dor emocional que fica ali, como uma pedra no rim, lembrando que existe, e que sua única função é mesmo doer.

O pior é a repercussão que provoca no futuro. Uma pessoa com complexo de culpa tende a sabotar seus planos para não se culpar ainda mais pelo sucesso ou felicidade que, por ventura, venha a conquistar, em detrimento de outros. Claro, há uma diferença entre complexo, que já entra para a categoria das doenças da alma, e o sentimento, que é normal, pois todos somos esse fantástico cadinho de emoções que se entrelaçam, se complementam, se alternam.

Não sentir culpa não seria normal, me consolo… Mas o duro é achar que se está no limite entre o normal e o preocupante. Uma coisa é sentir-se eventualmente culpado por não ter correspondido a uma responsabilidade ou à expectativa dos outros, como chegar atrasado a um compromisso, ou se esquecer do aniversário de alguém da família. Outra é carregar no peito uma sensação quase permanente de culpa pelos males do mundo.

A tal culpa

O velho Freud já ensinou que esse sentimento começa a ser formado junto com o superego. Em outras palavras, a partir do momento em que começo a me dar conta de que as pessoas ao meu redor têm expectativas a meu respeito, começo também a perceber que não vou conseguir atender a todas elas, e junto vem a tal da culpa.

Na verdade, parece que não temos como fugir disso, pois faz parte da estrutura de nossa personalidade, e não seria normal não sentir. Quem se desvincula do interesse ou do sentimento do outro está em outra categoria, esta, sim, patológica e preocupante, a psicopatia.

Freud aprendeu com Darwin que, no início da civilização, a estrutura social ainda era constituída de bandos, as hordas primevas. Nelas, para que houvesse o mínimo de organização, alguém tinha que mandar, e esse alguém, claro, era o mais forte, o dominador. E ele tinha algumas prerrogativas, entre elas a de usufruir de todas as fêmeas como seu harém pessoal. A ninguém mais esse direito era dado, nem a seus filhos, razão pela qual eles eram expulsos da tribo quando atingiam a maturidade sexual.

Mas esse fortão não durava para sempre. Seus filhos, com aliados insatisfeitos, algum dia voltavam para a tribo, matavam o dito-cujo, e o devoravam. Pronto, começou a confusão de sentimentos, pois o prazer da vingança necessariamente vem acompanhado pela culpa, principalmente porque mataram quem, ao seu modo, dava equilíbrio e ordem ao grupo e, em geral, não conseguiam substituí-lo, e o vácuo do poder era fomentador da desordem. Curiosamente, o déspota continuava exercendo seu poder, mesmo após ter sido vencido e abatido, e o fazia através da culpa que se instalava entre seus algozes. A coisa é antiga.

Cuidado com a frustração

Quando Freud explica o complexo de Édipo é disto que ele fala: o desejo libidinoso pela mãe e o impulso de eliminar o pai. A culpa surge dos dois lados. Na verdade, esse sentimento deriva da justaposição entre o id, que só quer saber dos seus interesses em busca do prazer máximo, e o superego, que nada mais é do que o limite social e a expectativa do outro. E vamos concordar que os dois são bem importantes e até fundamentais para o próprio equilíbrio social. Não daria para viver em um lugar onde cada um cuidasse apenas de seus interesses.

Por outro lado, descuidar de seus interesses geraria outro sentimento desagradável: a frustração. Aliás, é justamente do ato de cuidar de seus interesses que vem a promoção do bem comum, por vias tortas. Segundo Adam Schmidt foi justamente a vontade de se dar bem que estimulou o padeiro a fazer o melhor pão. Assim ele venderia mais. Para conquistar o cliente é preciso agradá-lo. Esse pensamento faz parte dos fundamentos da economia.

Ok, o padeiro e seu cliente estão satisfeitos quando o pão é bom. Mas bem que o padeiro gostaria de fazer um pão mais barato e cobrar mais por isso. Ganharia mais dinheiro. Só que neste caso perderia os clientes. Se isso acontecer, ele se sentirá culpado. Se fizer tudo o que os clientes querem, experimentará a culpa de se sentir explorado. E agora? A saída é o equilíbrio possível, mas é bom lembrar que ele depende da maturidade, e esta se alcança com o tempo, não sem risco, perigo e sofrimento.

A primeira separação. Culpa?

Pronto, a biologia, a economia e a psicologia se uniram para explicar por que sentimos culpa. Então relaxa, tá? É normal. Mas não dá para diminuir um pouquinho?

Estou pensando sobre isso e escrevendo este texto em um bar no lobby de um hotel fantástico em Las Vegas. Acontece que, quando cheguei e presenciei essa alegria que paira no ar – o lugar é uma espécie de Disneylândia de gente grande –, bateu um sentimento estranho. Senti, confesso, aquela culpa retirada do capítulo “será que eu mereço?”. E quem não veio, como estará?

Claro, tem um dado a mais, e grandão: esta é a primeira viagem do casal sem o filho pequeno. O Erik ficou em São Paulo, com a avó. Com a tia. O tio. E o primo. E a babá. Ah, e os bichinhos da casa. E a casa. E os brinquedos. É claro que ele está bem e se divertindo. Eu sei disso.

Mas vá explicar para meu emocional. Será que ele está mesmo se divertindo? Deve estar sentindo nossa falta.  Imagine quando acorda pela manhã e o papai e a mamãe não estão. Vai achar que foi abandonado? Para sempre? Provavelmente, mas isso só dura até que a avó o chama para tomar lanche e brincar.

Não tem jeito. Viver é lidar com sentimentos, quase sempre bons, muitas vezes nem tanto. E a culpa faz parte deles. Mas daria para diminuir pelo menos um pouco a culpa ruim? Já sei! Vou mudar os nomes. Vou chamar a culpa verdadeira de responsabilidade, e a culpa bobinha de saudades. Assim fica mais fácil lidar com o fato de que não sou perfeito, nem quero ser.

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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