Fuja do superficial e cultive os hábitos de uma vida com significado
Hoje reflete-se muito pouco sobre aquilo que se vive. O resultado é que a superficialidade domina todas as esferas. O que fazer? Contrarie a tendência e promova fugas da superfície
Vários estudos tentam interpretar (e compreender) o estilo de vida moderno. Diz-se que as rotinas saturadas de tarefas transformam o homem em um autômato, um ser funcional, sem capacidade e sem tempo para reagir à vida; que o consumo excessivo embota a apreciação para o que é essencial e, finalmente; que a tecnologia trabalha para nos manter na superfície sem significado. Estudos à parte — mais importante do que lamentar a modernidade, diabolizar a tecnologia e choramingar que o passado era melhor — é procurar alternativas.
Se o senso comum afirma que o reconhecimento da doença já é 50% da cura, estamos no bom caminho — todos são unânimes de que os tempos são maus. Munidos desse otimismo matemático podemos começar a agir. A constatação maior é de que o mundo tornou-se muito exigente, as impressões são rápidas. Hoje reflete-se muito pouco sobre aquilo que se vive. O resultado é que a superficialidade domina todas as esferas. O que fazer? Contrarie a tendência e promova fugas da superfície. Saia do terreno plano, do que está a vista e mergulhe na profundidade, no seu eu interior. Algumas pessoas tem medo da conotação que carrega a palavra “profundo”. Ela é associada à problemas, coisas obscuras e desconhecidas. Terreno da loucura. Divagações de lunáticos. Para suavizar a tarefa, vale a ressalva de que não se trata do sofisticado mergulho de garrafa de oxigênio. É uma imersão sem apetrechos, em apneia. E não precisa ser para tudo e em todos os dias. De tempos em tempos, olhe o que há na sua superfície, faça uma seleção e eleja o que precisa ser aprofundado.
E este não é um mero exercício de fuga da superfície para implicar com as tendências, é uma necessidade. Há áreas da vida em que permanecer na superfície e movimentar-se ao sabor dos ventos, poderá trazer estagnação e dificuldades. Se o seu trabalho é o seu bem maior, não fique apenas com a newsletter da sua associação. Aprofunde-se, faça uma especialização. Não existe nada estático no mundo — nem a sua profissão — tudo está em movimento, acompanhe-o. Essa é a diferença entre os profissionais realizados e os estagnados que contam os dias para a aposentadoria.
Se educar uma criança é a sua missão, não se limite aos achismos de conversas entre amigos e as dicas de revistas sobre pais e filhos. Eis aqui um exemplo de uma área que não comporta superficialidade. Há pais que não educam, criam os filhos. Outros acham que é uma tarefa da superfície, representada pela escola, pelo círculo social e pelo País. Há pais que diante do insucesso do filho, culpam a escola e as más companhias. Assuma integralmente essa tarefa e, se necessário, aprofunde-se com uma ajuda profissional.
O exercício da fuga ao superficial pode ser incorporado nas suas rotinas e também no seu discurso. Só defenda causas que tenham um valor real para você. E, antes de se engajar em lutas, informe-se, estude e leia sobre o assunto. Assim, você evita entrar em causas equivocadas ou participar em combates injustos. Sobretudo nas redes sociais, onde a adesão a uma causa resume-se ao botão “compartilhar”. Há pessoas que divulgam ideias políticas que não pactuam, notícias falsas e desaparecimento de pessoas que já foram encontradas.
É verdade que a eleição do que se quer, a separação do que é importante e do que não é, não são tarefas simples. Estamos na vida como dentro de uma livraria. Está tudo à disposição, mas não sabemos qual o livro escolher. Como não sabemos, apenas andamos pelo espaço, enxergamos os livros como blocos decorativos e o significado do conteúdo das obras é perdido. Você pode ter o mundo à sua disposição e, ainda mais fácil, ao alcance de um botão — como o gigantesco mundo oferecido pela internet — mas se você não tiver critérios de seleção para fazer escolhas, de nada adiantará a quantidade de ofertas. Quem não sabe o quer, não quer nada.
Olhe, analise e tenha muito clareza para onde inclina o seu coração. Depois de identificar o alvo, projete esse interesse no tempo, analise a sua durabilidade, a sua capacidade de atravessar os anos. Evite o superficial consumo imediato. Avalie as suas escolhas como trajetórias consequentes, com os olhos no futuro. Eleja critérios de seleção, retire o que serve e descarte o que não serve. Selecione assuntos que mereçam a sua dedicação, o seu olhar atento, o seu cuidado. E… esses mesmos critérios vale também para pessoas.
O sair da superficialidade exige um certo empenho, mas se for feito com constância, vira um hábito e depois passa a ser um atributo da sua personalidade. E quando fizer a escolha, cuide dela. A tarefa não termina no plantio. É preciso regar, vigiar, estar alerta para as pragas, retirar as ervas daninhas. E é perfeitamente possível cultivar a profundidade, sem negligenciar as rotinas práticas. Afinal, a vida precisa ser vivida na sua totalidade e grande parte dela acontece na superfície. Mas é na profundidade que mora o nosso eu autêntico, é onde habita a nossa consciência maior. A fonte do impulso que nos tornam humanos necessita da dimensão da transcendência. É nela que encontramos serenidade para encarar o nosso destino comum e a capacidade de celebrar a vida enquanto ela ainda nos pertence.
MARGOT CARDOSO (@margotcardoso) é jornalista e pós-graduada em filosofia. Mora em Portugal há 16 anos, mas não perdeu seu adorável sotaque paulistano. Nesta coluna, semanalmente, conta histórias de vida e experiências sempre à luz dos grandes pensadores.
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