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Da fazenda para a cidade
Max | Unsplash
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Cada vez mais o cultivo de alimentos tem se aproximado dos centros urbanos, das hortas comunitárias às grandes plantações. Tudo para nos manter mais perto de uma comida fresca e saudável

Essa é uma história que começou há muito tempo – cerca de 10 mil anos, segundo os estudiosos. Mas, desde que o homem desenvolveu maneiras de cultivo e criou a agricultura, a produção de alimentos cresceu brutalmente, possibilitando saciar a fome de mais gente, de uma forma melhor. A comida também passou a ficar ao alcance das mãos, uma tremenda conveniência para nossos ancestrais.

Quando a terra já não produzia mais, era preciso sair em busca de novos lugares, e levar a aldeia toda junto. A premissa era sempre do alimento – e de tê-lo ali, numa despensa natural e ao ar livre, o que permitia frutas e verduras bem pertinho e, claro, frescas. Desde então, a gente aprendeu a viver perto dos nutrientes: por comodidade, principalmente. Mas vieram as cidades, os grandes centros urbanos se desenvolveram e as pessoas migraram do campo para perseguir uma vida moderna. Graças à industrialização dos comes e bebes (e as conquistas químicas para preservá-los), foi possível deixar as plantações para trás. Por transporte, tudo isso chegaria até nós no mercado da esquina, não tinha problema. A premissa se inverteu: vai indo que a comida te alcança…

Dessa forma, mais e mais pessoas foram seguindo esse ciclo emigratório. Hoje, no Brasil, mais de 80% da população brasileira já vive em áreas urbanas, segundo o IBGE. A expectativa é que esse número passe de 93% em 2050. Ficamos aqui, nas cidades, e as plantações lá, no campo, a muitos quilômetros de distância.

Perdemos tanto o contato com a natureza das coisas que nossos filhos ainda têm dificuldade de entender que por trás de uma bandejinha de isopor existe um ciclo de vida enorme. Mas tudo bem, estamos felizes vivendo na metrópole, com comida do mundo todo à venda nos mercados, certo? Nem tanto: a questão é que a comodidade da vida urbana nos relega alimentos piores, menos frescos e saudáveis. Nosso distanciamento teve um preço.

Nos EUA, por exemplo, 95% da comida percorre mais de 1,6 mil km para chegar aos pontos de venda. Toda a alface disponível nos varejões do país demora uma semana para vir da Costa Leste e ser distribuída. O frescor, mesmo, só nas fotos das embalagens.

Para reverter essa situação, a saída de alguns produtores, consumidores e ativistas foi trazer, então, a agricultura novamente para perto, de forma a resgatar a nossa relação com a terra e com os alimentos. Foi assim que surgiu a tal agricultura urbana, que começou como um movimento de subsistência e resistência de pequenos grupos que queriam ir contra o sistema atual. Mas, aos poucos, a proposta foi ganhando mais adeptos e apoiadores. E, dessa forma, as pequenas hortas comunitárias serviram como inspiração para um modelo de negócio, com produção maior e em áreas próximas a nós.

Fazenda na cidade
A BrightFarms é uma dessas empresas inovadoras que investiram em criar fazendas em grandes metrópoles americanas – e por fazendas entenda-se a produção em média e larga escala, não necessariamente aquele modelo dos livros de ciências, com vaquinhas e galinhas. No caso da empresa, com bases de distribuição em Nova York, Chicago e Washington, o modelo adotado foi o do cultivo hidropônico, por permitir maior produtividade com menos recursos naturais (água e solo). “O design dos sistemas hidropônicos permite a recirculação de água. Isso significa que usamos menos água do que a agricultura convencional e não há escoamento agrícola. Para os tomates, por exemplo, podemos usar até 25 vezes menos água”, afirma Paul Lightfoot, CEO da BrightFarms. “Só usamos sistemas hidropônicos porque só cultivamos alimentos nas mesmas comunidades nas quais eles serão consumidos. Do contrário, não seria viável trabalhar assim”, acrescenta.

Com fazendas em pontos estratégicos como Kansas City, Bucks County e Elkwood, os alimentos produzidos pela BrightFarms, de baby rúcula a tomates e espinafres, chegam no mesmo dia aos seus clientes – elas ficam a menos de uma hora de distância, e a de Kansas City, por exemplo, se localiza a singelos seis minutos do centro. “Além de locais, frescos e saudáveis, pela não necessidade de utilizarmos agrotóxicos, os alimentos são cultivados de uma maneira mais sustentável”, afirma. “Precisamos de um ambiente controlado (não exposto ao tempo) para atingir uma produção durante todo o ano, e assim termos uma alta produtividade por metro quadrado.”

O cultivo hidropônico em estufas permite à BrightFarms entregar produtos usando 75 por cento menos terra, menos 90 por cento de água, 98 por cento menos combustível do transporte e menos energia em geral, custando ao consumidor final o mesmo valor do cobrado por grandes supermercados. A empresa produz cerca de 500 toneladas de alimentos ao ano. A BrightFarms faz parte de um movimento que está revolucionando a nossa relação com os alimentos. “Não existe como negar que o renascimento das feiras de produtores na década passada fez com que as pessoas lembrassem (ou se educassem sobre) o que é um produto fresco e sazonal”, afirma Jennifer Cockrall-King, autora do livro Food in the City: Urban Agriculture and the New Food Revolution (A Comida na Cidade: Agricultura Urbana e a Nova Revolução Alimen- tar, sem tradução no Brasil).

Ela defende que a indústria da comida se tornou tão grande e sua distribuição, tão global que passamos a questionar a qualidade do que compramos, já que, segundo ela, “os estragos que elas podem causar têm agora dimensões internacionais”. Jennifer cita um caso de uma linha de suco de pera orgânico para crianças que foi fabricado na China e que, em 2008, teve que ser recolhido dos EUA, Canadá e Hong Kong pela alta quantidade de arsênio.

“Tem se tornado impossível ignorar os riscos da produção de alimentos em alta escala em nome da conveniência e dos preços”, afirma. “Por isso as preocupações em torno da ética dos produtos baratos e uma política por igualdade de acesso a alimentos mais frescos e saudáveis finalmente se tornou um assunto comum nas nossas conversas”, acredita. A saída encontrada pelas pessoas que querem uma alternativa aos fertilizantes químicos, pesticidas e um sistema que usa milhares de litros de combustíveis fósseis para ser distribuída foi voltar aos princípios dos nossos antepassados: assumir o controle de sua comida ao plantá-la bem perto.

Uma horta para chamar de sua
E bem perto, em alguns casos, pode significar o quintal e até a varanda de um apartamento de um dormitório. Ninguém precisa ter uma fazenda como a de Paul Lightfoot para cultivar seus alimentos. Pelo menos é o que defende a startup luso-brasileira Noocity, que desenvolve e vende equipamentos para hortas urbanas como forma de contribuir para uma sociedade mais consciente. A empresa desenvolve soluções específicas para facilitar o cultivo, baseada nas três principais dificuldades do novo agricultor urbano: tempo, espaço e conhecimento.

Seu princípio está no Growbed, uma espécie de jardineira com design e materiais inteligentes que necessitam de menos água para as plantações. Assim, quem cultiva nela não precisa fazer a rega diária. “O sistema de capilaridade faz com que o substrato esteja sempre úmido, dispensando o conhecimento sobre o quanto cada espécie precisa de água. As dimensões também são compactas e podem ser feitas a partir de 60 cm para espaços pequenos. A instalação também dispensa reformas e instalações complicadas, com questões hidráulicas ou de solo”, diz Rafael Loschiavo, um dos sócios da empresa.

“A horta faz com que a gente se torne mais consciente, gaste menos e se alimente melhor. As cidades também estão vivendo uma crise existencial por seu afastamento da natureza, e muitos de seus habitantes já sentem a necessidade de se reaproximar do verde”, defende Rafael. “A maior parte das pessoas não sabe de onde vem aquilo que está no seu prato. Quando acompanhamos todo o processo de crescimento de uma planta, passamos automaticamente a respeitar mais o que comemos e também a natureza ao nosso redor.” Essa máxima também começou a rodear a gastronomia, há alguns anos, com o conceito de farm-to-table (do campo a mesa), no qual chefs e cozinheiros passaram a se aproximar mais de seus fornecedores e produtores. Alguns até arrendaram fazendas para ter maior controle dos ingredientes que chegam às suas cozinhas ou, no extremo, fundaram suas propriedades agrícolas.

Foi o caso do chef americano Dan Barber, que criou um ecossistema completo numa área em Stone Barns, local bem próximo a Nova York. “O Blue Hill at Stone Barnes (restaurante que o chef abriu ali) foi concebido com a premissa de encurtar a cadeia alimentar, de termos um maior controle do que servimos”, conta ele. Tudo que é colhido é imediatamente incorporado ao menu, sem nenhum tipo de atravessador. Quando criou a fazenda, há dez anos, Barber estava em busca de melhores sabores para seus pratos. Além disso, ele tinha o objetivo de aproveitar sua visibilidade como chef – Dan Barber é considerado um dos melhores do mundo – para influenciar outros profissionais e instigar a reflexão em torno do processo produtivo. “Nossa crença de que podemos criar uma dieta sustentável para nós mesmos ao escolher a dedo magníficos ingredientes está errada. Não podemos pensar em mudar as partes integrantes de nosso sistema. Precisamos pensar em redesenhar o sistema”, acredita Barber, que acaba de lançar, por aqui, o livro O Terceiro Prato – Observações Sobre o Futuro da Comida (Bicicleta Amarela).

Hoje as pessoas que moram nas grandes cidades não sabem de onde vem seu alimento e têm pouco contato com os meandros que perpassam a comida até chegar a mesa. “A comida não precisa ser paga, pode ser plantada. E plantá-la é a coisa mais transformadora que você pode fazer pela sua alimentação.” Seja você uma pessoa comum ou um chef estrelado.

RAFAEL TONON não cultiva todo o alimento que come. Mas tem um promissor sítio de café em Minas, onde pretende começar com uma horta.

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