O guru, a corda, o limão e a limonada
O dia em que John Lennon me ajudou a manter a leveza em meio ao perrengue.
O dia em que John Lennon me ajudou a manter a leveza em meio ao perrengue.
Num Carnaval que passei no Rio de Janeiro, uns amigos de uns amigos apareceram no ponto de encontro da turma, uma praça na zona Sul, fantasiados de palhaços e munidos de uma corda comprida. Eu não sabia, mas era uma tradição do grupo.
Nos quatro dias de folia, eles escolhiam um canto na praça, estendiam a corda e, cada um numa ponta, começavam a fazer voltas com ela. Em outras palavras, batiam corda. Rapidinho, tinha uma fila de princesas, piratas e colombinas esperando a vez de pular.
E então eles se divertiam a noite toda interagindo com quem aparecia. Assim, aceleravam a corda para uma bruxa mais habilidosa, facilitavam os pulos da enfermeira fora de forma, sacaneavam um ou outro super-herói. O público em volta aplaudia os participantes e vaiava os palhaços, quando eles abusavam de sua autoridade. Era uma festa.
Me dei corda
Inspirado pela experiência carioca, alguns anos depois passei numa loja de material de construção, numa sexta-feira véspera de Carnaval, e comprei 6 metros de corda. Para ostentar autoridade na ponta da corda, me fantasiei de guru: turbante, os olhos contornados com cajal, sem camisa.
Tenho algumas recordações dessa tarde: lembranças da fila de pessoas esperando para pular. Uma ou outra imagem de alguém que mandou muito bem. E umas fotos minhas fantasiado de guru. Numa delas, eu olho a câmera com olhar penetrante, segurando uma lâmpada que pendia acesa do teto. Parece uma bola de cristal. A foto ficou tão boa que durante muito tempo foi minha imagem de perfil no aplicativo de mensagens.
Cuidadora descuidada
Nessa época, meu sogro estava passando por problemas de saúde e precisou de cuidadoras durante 24 horas por dia. As mulheres se revezavam em turnos de 8 horas. Como ele não dirigia, a cuidadora do turno da noite, que aos 40 anos havia acabado de tirar sua habilitação, passou a deixar seu carro, recém adquirido, na vaga do apartamento.
O trabalho de cuidadora de idosos é árduo. O turno da noite muitas vezes significa não pregar o olho. E foi debaixo de pouco sono e muita chuva que a cuidadora, ao sair do turno, acertou o carro de uma vizinha do prédio. Debaixo do ruído da torrente de água e da sonolência que lhe turvava a visão e a mente, ela nem percebeu. E foi embora.
A insônia se avizinha
Mas a síndica do prédio também tinha um problema de sono. Sua insônia tinha nome e sobrenome e era dona do carro em que a cuidadora bateu: uma pessoa de alma atormentada que reclamava de tudo e de todos. Na manhã do acidente, ao ver seu carro amassado, a mulher do espírito acabrunhado deu início a um tormento que duraria semanas.
Confrontada com as imagens de vídeo das câmeras de segurança do prédio, a cuidadora admitiu sua culpa no acontecido sem dar um pio. E se prontificou a ressarcir o valor do conserto, apenas queria que isso fosse feito em parcelas. Em vez de apaziguar, essa aceitação sem reservas pareceu atiçar uma brasa no coração da vizinha ofendida.
Em uma sequência diária de mudanças de atitude, a mulher descumpriu tratos feitos, acrescentou à conta valores antes inexistentes e assediou a cuidadora nos corredores do prédio. No terceiro dia de achaque, eu e minha mulher decidimos intervir e assumimos a negociação com a vizinha.
Fá-lo-ia melhor
Antevendo grosserias e tentando manter ao máximo a distância, comecei a trocar mensagens com a vizinha de maneira ridiculamente formal. Com um estranho palavreado rebuscado e muitas formalidades, eu queria deixá-la confusa. Queria que, sem saber com quem lidava, ela não se sentisse segura para repetir o comportamento que vinha tendo com a cuidadora. Queria que ela cumprisse o combinado, fosse ele qual fosse.
E foi assim, com mesóclises e palavras extraídas do dicionário, que chegamos a um trato pelo qual eu pagaria um determinado valor, em dinheiro. E que ela assinaria um termo quitando a pendência.
Espírito de porco
Redigi o documento, imprimi e estava prestes a colocar terno e gravata para ir encontrá-la para coletar sua assinatura. Eu queria impressioná-la, para impedi-la de inventar alguma novidade de última hora que atrapalhasse o acordo. Foi quando me dei conta de que, durante toda essa negociação formal, a imagem que ela via no aplicativo de mensagem por onde conversávamos era a de um sujeito de turbante e olho pintado de preto, segurando uma bola de cristal. Não parecia alguém sério, que merece respeito.
A não ser… a não ser que a respeitabilidade pudesse vir de outra fonte. Decidi envergar a persona que o guru inspirava. Resgatei uma fantasia que um dia me havia servido para encarnar John Lennon em uma festa dos anos 60: calça, camisa e sapatos brancos, paletó creme. No pescoço, todos os terços cristãos e budistas que havia em casa. Nas mãos, anéis vistosos.
Cachorrada
Percebi o efeito que minha figura causava na manhã de terça-feira logo na primeira parada ao sair de casa, no banco a poucas quadras de casa. Enquanto eu esperava no carro que minha mulher fizesse o saque do dinheiro a ser entregue, surgiu um amigo, caminhando com seu cachorro. Ao me ver, se aproximou. E parou a meio caminho da distância habitual de conversa, ao ver minha indumentária. Eu, me divertindo, não expliquei nada e deixei a pulga atrás de sua orelha.
A conversa com a vizinha ocorreu sob um sol escaldante, na garagem descoberta do prédio do meu sogro. Foi rápida. Ela assinou o papel, eu entreguei o dinheiro. Fechado o acordo, ela começou a falar mal da cuidadora, e eu sem perceber assumi uma postura defensiva. Minha mulher, que acompanhava tudo num misto de irritação e diversão, cortou rapidamente o papo. A mulher foi embora.
Só depois de muitos meses, relembrando a história, foi que eu me dei conta de que poderia ter aproveitado mais da persona que havia envergado naquele dia. Podia ter feito gestos supostamente ritualísticos, podia ter dito palavras estranhas. Podia ter me divertido como no dia em que assumi a autoridade do dono da corda. Talvez tivesse sido uma experiência melhor para todo mundo.
Rodrigo Vergara tenta extrair mais diversão dos papéis que escolheu para a vida: jornalista, ator improvisador, facilitador de processos de confiança em equipe e fundador do PlayGrounded – a Ginástica do Humor. Às vezes se fantasia de guru.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login