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Salvem as crianças
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O Henrique e a Talitha são irmãos e amigos. Na foto eles estão atônitos, de mãos dadas, engasgados pela aflição. Ao redor, a destruição. A falta de opções futuras não se desenha em suas mentes. Nem a falta que seus pais farão em suas vidas, ou se não mais retornarão. Estão paralisados. Não gostaria que eles passassem por essa experiência abrupta. Não é um raciocínio, mas um sentimento profundo. Vejo alguma estabilidade no rosto do Henrique, que não vem da clareza, mas da base de seu coração. Talitha, menor, se apoia no irmão. Gaza, Trípoli, Bagdá, Damasco, Hiroshima, Ruanda, Rio de Janeiro, ou seria no Gueto de Varsóvia? Quando, em Varsóvia, os militares começaram a evacuação da população do gueto onde haviam empilhado as famílias judias polonesas, e onde essas famílias valorosamente resistiram, eles separaram os homens, as mulheres e as crianças. Houve o momento em que cada criança lançou o último olhar para sua mãe e para seu pai. Aí também Henrique e Talitha deram-se as mãos com algum destemor, engasgados, e simplesmente seguiram. As visões coletivas compartilhadas como bolhas de realidade tornam aceitáveis as piores ações, mesmo que vindas de povos que apreciam a música clássica, a ciência, entendem de filosofia e psicologia e dedicam muito de seu tempo à educação, à cultura, a cultivar valores elevados e visões equilibradas. Mesmo que tenham razão e sejam regidos por leis. Rezo pelo Henrique e pela Talitha. Rezo pelos jovens de todos os tempos e fardas que se tornam veículos das atrocidades, cujos corações, dilacerados pela visão de suas ações, ficam incapazes de repousar. Rezo pelos jovens que, ao viverem o desabamento dos seus mundos, veem na destruição e na ação impiedosa a força maior, e propagam essa visão e essa ação. Se ainda houver tempo, que as crianças de Donetsk, Luhanski, não passem por isso. Rezo para que todos entendam e se aliem à força amorosa que faz pais e mães cuidarem de seus filhos, que faz amigos se ajudarem pela alegria de ajudar. A força que flui sobre nós e nos inspira às visões e ações que constroem a paz e a lucidez. Rezo para que todos possamos nos perdoar uns aos outros pelas ações alucinadas que podemos gerar das dores e sofrimentos que explodem nossos mundos e nossas vidas. Perdoar é não perder a visão de que o mais profundo no outro e em nós é a natureza brilhante e livre que pode nos reconstruir – e recriar mundos de lucidez e de paz. Que a Talitha e o Henrique entendam isso.

Padma Samten é lama budista. Fundou e dirige o Centro de Estudos Budistas Bodisatva, em Viamão, RS.

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