O que aprendi na cerimônia do chá
Quando o avião levantou voo de Reykjavík, olhei pela janela e pensei: "pode cair". Não estava tendo uma alucinação que nasce do cansaço depois de uma noite em claro, nem fazendo uma ode à tragédia. Pelo contrário. Eu deixava o aeroporto transbordando vida.
Quando o avião levantou voo de Reykjavík, olhei pela janela e pensei: “pode cair”. Não estava tendo uma alucinação que nasce do cansaço depois de uma noite em claro, nem fazendo uma ode à tragédia. Pelo contrário. Eu deixava o aeroporto transbordando vida. Se o avião caísse, não teria problema. Foi uma das raras vezes em que me senti tão plena que tudo poderia acabar naquele momento. Eu havia chegado à Islândia no final de junho para passar cinco dias no World Tea Gathering, o primeiro encontro de artistas e praticantes de cerimônia do chá, que reuniu gente de escolas e linhas diversas. A cerimônia é uma arte tradicional japonesa que envolve o ato de preparar o chá de um jeito delicado e repleto de significado. Para o anfitrião, por exemplo, esse é um caminho de desenvolvimento estético e espiritual. E cada ritual é único, elaborado a partir de um conceito ou tema, chamado performance.
Todos os objetos escolhidos, arranjo floral e doce oferecido evocam um sentimento. Para as escolas, alguns gestuais são diferentes, mas a essência é a mesma: respeito, pureza, harmonia e tranquilidade. A data em que cheguei ao encontro casou com o solstício, que marca o início do verão por lá e é considerado um dos dias mais longos do ano ? e que foi também o mais extenso da minha vida. Eu havia acordado por volta das seis da manhã, ainda em Londres, e corri para um curso com a renomada especialista em chás Jane Pettigrew, que envolveu teoria, degustação e um clássico chá da tarde. De lá, segui para o aeroporto e, quando finalmente cheguei à Islândia, fiz um esforço gigante para manter minha atenção e não perder o último ônibus para o centro de Reykjavík, capital do país. Entre um cochilo e outro do trajeto, me dei conta de que passava da meia-noite, mas o céu ainda estava claro.
Fechei os olhos e percebi que Adam, artista australiano e professor da cerimônia do chá, e quem me convidara para o encontro, estava começando sua performance, que duraria um dia inteiro, na Imagine Peace Tower (memorial em homenagem a John Lennon). Esse pensamento me ajudou a desacelerar, assim como a vista da janela: uma estrada cercada por rochas baixas e escuras e um gramado verde musgo ? uma monotonia visual que me conduzia a meditar. Identifiquei, então, uma sensação que se repetiu em diversos momentos durante o World Tea Gathering: a de estar o tempo todo acordando.
A cerimônia
Fui a última a chegar na casa alugada pelo grupo. Éramos oito: seis artistas e professores de cerimônia do chá de estilos e nacionalidades diferentes, além de dois fotógrafos. Ainda havia outro praticante e sua mulher. Mas eles optaram por um hotel. Mais do que viajar pela Islândia realizando cerimônias em lugares incríveis, como parques e gêiseres, o que mais me marcou foi ter compartilhado o espírito do chá no cotidiano. Os valores da cerimônia (respeito, pureza, harmonia e tranquilidade) iam se revelando em atos corriqueiros, como ajudar o outro a carregar os utensílios e montar uma ?sala de chá? (para desmontá-la depois), ou quando nos ajudávamos para conseguir escalar pedras cobertas por musgos e assim chegar a uma linda praia.
No ritual, o anfitrião pensa em todos os detalhes para que os convidados desfrutem ao máximo o encontro, que ficará registrado como uma lembrança especial, caso eles nunca mais se vejam. Para isso, o chá escolhido é o de melhor qualidade e servido em uma cerâmica considerada uma obra de arte. Os convidados são colocados na sala, em um lugar onde tenham a melhor vista para uma caligrafia ? pendurada na parede ? e um arranjo floral. Mais do que apreço estético, o anfitrião deixa seus sentimentos transparecerem no preparo da bebida e de cada detalhe que integra o ambiente.
É no termo japonês ichi-go ichi-e (uma vez, um encontro) que está a essência do ritual: um momento belo e sublime que só acontece uma vez na vida. Uma experiência, portanto, inesquecível. Praticávamos uma espécie de revezamento não combinado de quem seria o anfitrião. E, cada um, por meio de pequenos gestos, procurava tornar a convivência mais agradável para os outros. Allan, da Tasmânia, professor dessa tradição oriental e de ioga, se dedicava a nos ensinar uma sequência de asanas (posturas da ioga) no início da manhã. Enquanto isso, alguém (geralmente Souheki, japonesa que mora há alguns anos em Nova York) preparava o café da manhã. Às vezes, fazíamos a refeição juntos. Quem não cozinhava, arrumava depois. Alberto, da Itália, se ocupava da seleção musical (no dia em que cheguei, escolheu canções da bossa-nova). Assim, tínhamos tempo de comer, dançar, planejar o dia, carregar o carro (com fogareiro, chaleiras, panelas, tigelas de chá) e sair de casa entre nove e dez da manhã. Essa organização acontecia de forma sutil ? tal como na cerimônia do chá ?, sem o envolvimento de palavras. Não havia nenhum papel com regras pendurado na parede.
Uma atenção fina em relação ao restante do grupo fazia o dia a dia fluir sem grandes discussões. Nossas jornadas eram longas e, apesar de ser o auge do verão, ventava e fazia frio. E sempre havia alguém disposto a emprestar um casaco, comprar um lanche quente e dividi-lo ou aquecer o anfitrião depois da cerimônia ? em quase todas as performances, ele vestia quimono ou uma roupa fina. E, apesar da musculatura do corpo estar contraída pelo frio intenso, todos se esforçavam para que a suavidade tomasse conta dos movimentos durante o preparo do chá. Apenas isso já aquecia cada um dos convidados para o ritual.
Dias depois
Foram apenas algumas semanas depois da viagem que me dei conta desses detalhes e que o nome do encontro ? World Tea Gathering ? fez muito sentido. O que havia começado em uma conversa informal entre Adam e Mai, artista contemporânea japonesa, que pensaram em reproduzir o histórico Kitano no Ochakai (um encontro promovido pelo senhor feudal Hideyoshi Toyotomi, que reuniu, em 1587, todos os mestres de chá em Kyoto, então capital do Japão), se revelou como uma grande cerimônia do chá, um treinamento intensivo e um encontro de onde nasceram amizades.
Eu, uma iniciante no quarto ano de aprendizado desse ritual, estava o tempo todo em migeiko (termo japonês usado para definir o treino que se dá pela observação): atenta em cada atitude, postura, gesto ou conversa. Talvez tenha sido esta atenção constante que me levou a escolher uma pequena praça em Reykjavík para realizar minha performance, que chamei de Renascimento. Cheguei ao local carregando objetos brasileiros como moringa, cuias de tacacá e guias de umbanda ? o conceito principal era origem e todos os objetos haviam sido comprados no bairro onde nasci e cresci, em São Paulo. A pracinha se revelou um lugar onde cabiam minhas escolhas de vida: um caminho feito de tocos de árvores (que reproduziam o jardim de pedras que conduz à sala de chá), hortas de ervas e temperos, balanços de crianças e arte na parede.
Com a luz do fim de tarde, ofereci chá para uma galerista, um músico e um ator ? pessoas que nunca mais encontrarei. Ichi-go ichi-e. Encerrei, assim, minha cerimônia para os meus novos amigos. No World Tea Gathering, vivemos uma continuidade de dias que se emendavam um no outro, em completa ressonância com uma frase que Alberto me disse em uma das nossas conversas de estrada: ?no chá, não existe começo e fim da aula?. Tentamos, enfim, levar esta cerimônia para a vida. E vice-versa. Ficou claro para mim que, independentemente do estilo da escola onde se aprende e pratica cerimônia do chá, a linguagem é universal. Estamos buscando movimentos fluidos como as águas de um rio e construindo coletivamente harmonia e paz.
ERIKA KOBAYASHI é jornalista, socióloga, especialista em chás e performer. Há 12 anos, treina práticas zen-budistas.
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