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Um pomar para chamar de seu
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Se você se interessou por esta reportagem, provavelmente compartilha comigo da inclinação para seguir no contrafluxo do inchaço urbano. A ideia de morar no campo me acompanha como um sonho bom, no qual o tempo espera quando estou aproveitando dos prazeres simples do contato com a terra, como comer fruta colhida no pé. Um desejo, confesso, anestesiado pelas metas pessoais e profissionais atreladas às grandes metrópoles. Embora o trânsito, a poluição, a violência e o alto custo de moradia me façam questionar o sentido de permanecer por aqui, o desejo de mudar vai ficando empoeirado, como uma relíquia esquecida em uma prateleira.

O fato é que a maioria de nós escolhe morar nas grandes capitais, como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre ou Recife, em geral, por causa da busca do sucesso profissional. Uma tendência que só deve aumentar, pelos cálculos da Organização das Nações Unidas (ONU), que prevê a concentração de 70% da população mundial nas áreas urbanas em menos de 50 anos. Mas há quem contrarie as estatísticas. Empreendedores jovens e cheios de projetos estão seguindo na contramão do desenvolvimento baseado na lógica metropolitana. O que eles buscam? Uma vida mais tranquila, o contato diário com a natureza e uma casa com espaço para horta e pomar.

Recentemente, tenho ouvido histórias que me fazem perceber o quanto a vida fora dos limites das cidades superpopulosas é possível, com uma boa dose de desapego dos hábitos urbanos. Com horários de trabalho flexíveis e o uso da internet, cada um encontra a sua maneira de seguir nesse caminho. A alternativa pode ser se mudar para a zona rural, mas manter as mesmas atividades de trabalho ou, ainda, optar por uma área de atuação profissional diferente em uma localidade um pouco menor. E tem, ainda, aqueles que modificam a rota de uma maneira mais radical e buscam na terra seu ganha-pão, como os chamados produtores rurais.

Horários flexíveis

As pesquisas sobre a cultura sertaneja contribuíram para que Cacai Nunes, produtor cultural e violeiro, se mudasse para um lugar mais afastado a 30 km do centro de Brasília. Na chácara, ele produz e apresenta o programa musical Acervo Origens, que vai ao ar semanalmente na Rádio Nacional. Pela internet, envia o material gravado no estúdio, construído no terreno de dois hectares. O espaço abriga também a casa do caseiro e a de Cacai, que mora ali com a esposa. E ainda um galinheiro, um pomar e uma horta. ?Aqui há um silêncio absurdo, e eu sempre tive atração pelo rural. Além do mais, Brasília está impraticável para quem quer um imóvel próprio?, diz.

Esse, aliás, é o motivo que tem atraído muita gente para o campo: imóveis amplos e mais baratos. Mas a mudança teve lá seus percalços. Para chegar ao sítio, por exemplo, é preciso percorrer 7 km de estrada de terra. E isso fez com que a instalação da internet demorasse quase um ano para acontecer. O sinal do celular ainda é fraco e a televisão digital não pega. Com menos distrações, o músico aproveitou para mexer com a terra e plantou manga, maracujá, jaca, mamão, abacate, pitanga e graviola. Os gastos com a chácara pesam nas contas do violeiro, mas não o fazem voltar atrás de sua decisão de se manter longe da cidade grande. ?Aqui, eu durmo melhor e tenho liberdade de estar em um espaço grande, onde posso continuar plantando e empreendendo?, adianta ele, sobre os planos de comercializar a produção da horta, rica em vegetais e legumes.

A opção de Cacai funcionou porque ele manteve as atividades profissionais que exercia. Trabalha no estúdio de casa e define os próprios horários, indo à cidade duas vezes por semana. Sair é a parte mais difícil para ele, enraizado no universo particular da chácara Casa do Chapéu, que virou tema do disco autoral gravado no próprio estúdio. As composições com a viola caipira transmitem a ruralidade que ele cultiva, com arranjos que incluem o barulho dos bichos e da mata, captados na gravação. ?Estou longe da cidade, mas perto de tanta coisa agradável… o silêncio, a natureza, a brisa? ? nesse ponto da conversa ele para de falar. Parece buscar as palavras para mensurar os ganhos que teve. Nem precisava explicar. Quem sonha com isso, entende.

Incentivo para migrar

A mudança do violeiro foi uma iniciativa individual. Mas a migração para o campo pode também ganhar um reforço coletivo e institucional. Na Europa, é o que fazem os Novos Povoadores, grupo que promove o êxodo urbano ao intermediar parceiros de negócios e fontes de financiamento, na Europa. A entidade tem uma lista de atividades econômicas viáveis para a realidade rural, no qual o custo de instalação é reduzido e a mão de obra é mais barata.

Quem tem recursos para investir pode tentar a apicultura, com gasto médio inicial de 30 mil euros. Se o plano é virar agricultor, os investimentos sobem para 150 mil euros. A integração entre profissionais dispostos a sair das grandes metrópoles é também o foco da comunidade portuguesa Novos Rurais, que usa as redes sociais para difundir o amor pelo campo, os projetos de bioconstrução e a produção em pequenas propriedades agrícolas. Só no Facebook, o perfil tem mais de 230 mil seguidores. E a versão brasileira ultrapassa os seis mil.

De olho nessa tendência, a Comunidade Europeia está injetando recursos para atrair gente jovem  para essas regiões, como o programa que financia empreendedores que querem iniciar uma atividade agrícola sem precisar abrir mão de sua ocupação original. De Paris para Goiás O trabalho na captação de recursos para instituições internacionais que promovem a agricultura sustentável levou o economista italiano Giuseppe Muscogiuri a trocar Paris por Pirenópolis, cidade de 20 mil habitantes no interior de Goiás. Hoje, Giuseppe é dono de um armazém de produtos orgânicos e integrais ? alguns deles produzidos localmente, outros trazidos de fora. Em parceria com um sócio francês, que já vivia na cidade, ele toca o negócio que fica no centro histórico de ruazinhas estreitas e casas coloniais. Nas horas vagas, aproveita a casa ampla, onde mora, e as árvores frutíferas do quintal. ?A vida aqui é diferente, mais introspectiva, mais perto da natureza?, diz o italiano que cresceu em uma pequena cidade ao sul de seu país de origem. A mudança para o Brasil, há cinco anos, foi motivada pela vontade de colocar a mão na terra e produzir alimentos orgânicos. ?A gente não se dá conta, na correria da cidade, que estamos desconectados do ciclo produtivo. Quando você mora no campo, entende que faz parte desse ciclo e tem que interagir com ele?, reflete o economista, que conheceu de perto as políticas de incentivo à produção de alimentos orgânicos na França.

A trajetória de Giuseppe, aliás, passou por uma série de percalços até ele, de fato, se estabelecer. Primeiro, passou um ano na Bahia, como voluntário em unidades produtivas. Só que, dessa forma, não conseguiu se manter. Então, seguiu a recomendação de amigos e se mudou para Pirenópolis. Ali, juntou-se ao Instituto de Permacultura e Ecovilas do Cerrado (IPEC) e começou a vida trabalhando como agricultor, em propriedades menores. Foi quando desenvolveu, nos moldes do que conheceu na Europa, um programa de entrega de cestas de alimentos orgânicos. A iniciativa durou um ano e hoje o italiano toca apenas seu próprio armazém.

A efervescência parisiense não deixou saudades em Giuseppe, que não pensa em mudar de vida. Movimento, agora, só nos eventos turísticos que ele se engaja, como o festival de cinema internacional promovido pelo Slow Food, uma militância gastronômica de combate aos domínios da fast food, que tem um núcleo na cidade. Qual foi a maior dificuldade nessa jornada? ?O plano era fazer uma mudança radical e virar agricultor, mas financeiramente não deu?, pondera. O que mais pesa é a distância da família, remediada pelos meios digitais. ?A internet é fundamental para manter este contato, além de ser instrumento de trabalho e me manter conectado com o resto do mundo?. A conversa, então, é encerrada porque Giuseppe está de saída para uma trilha que leva a uma cachoeira. Concluo a reportagem com a visão dessa cachoeira de águas límpidas ? um refresco imaginário em um dia quente ? e com o desejo de mudança revigorado pelos relatos de quem já seguiu neste contrafluxo. Por enquanto, eu ainda permaneço na cidade grande. E você?

JAMILA GONTIJO PIFFER é jornalista e mora em uma grande metrópole. Cultiva na sacada do apartamento uma pequena horta, que já deu manjericão, cebolinha, hortelã e pimenta.

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