A raiva nossa de cada dia
Apesar de mal vista, a raiva aponta o que é preciso mudar e é o combustível do orgulho, do senso de justiça e das lutas necessárias.
Certa vez, meu filho saiu do treino de futebol às lágrimas. A razão: ele havia levado um chute do treinador. E não, não foi um acidente, foi mesmo de propósito. Imaginei a cena. Vi o meu filho de sete anos, franzino, com pouco menos de 1,50 metro e, o treinador, do alto da sua autoridade de mais de 1,90 metro. Todos os meus músculos entraram em tensão, recebi uma onda de adrenalina, meu coração disparou e marchei para a sala da direção. Ele já não estava. No dia seguinte, eu ainda sentia muita raiva, não era capaz de diálogo. Só me imaginava esbofeteando o treinador. O pai, calmo e diplomático, recebeu a missão de ir no meu lugar. A conversa foi quase amistosa. O argumento foi de que “um pequeno chute” fazia parte, uma forma de “enrijecer” os atletas.
Não me convenceu e não esqueci. Na entrada e saída dos treinos, todas às vezes que o professor me olhou, retribui com um olhar feroz. A raiva permanecia. No Dia das Mães, todos os anos, a escola de futebol convida as mães para jogarem com os filhos. E lá fui eu. E eis que me vejo com a bola e quem vem em minha direção para tirá-la? O referido treinador. Esqueci a bola e dei um potente chute na sua canela. Ele fez um esgar de dor e eu, muito serena, pedi desculpas: “Sinto muito, mister”. Porém — para a minha satisfação — vi que ele leu exatamente o que estava escrito na minha testa: “Isto é pelo chute que você deu no meu filho, canalha.”
Sangue frio
Não me orgulho desse episódio, mas assumo aqui a minha humanidade. Há quem diga que quase não sente raiva, apenas raramente. Não é verdade. O que se passa é que as pessoas confundem raiva com agressividade. A raiva é uma emoção com vários níveis de intensidade. E é só nossa. Às vezes, os outros nem sequer notam a nossa raiva. A agressividade, não. É uma ação — verbal ou física — desencadeada pela raiva e altamente visível. E pode ter vários alvos: outras pessoas, objetos, mobília e até o próprio raivoso.
Nesse sentido, a raiva abrange um largo espectro. Vai desde um ligeiro desprazer até uma “loucura temporária”, como classifica o filósofo estoico Sêneca. Há raivas pequenas, como quando não encontramos uma vaga para estacionar. Há médias, como quando somos preteridos ou ignorados. Há raivas enormes — com direito a explosão de adrenalina — como a que sentimos quando alguém que amamos é tratado de forma terrível. Há raivas crônicas, provocadas por notícias sobre corrupção na política, impunidade etc. E, claro, há raivas que levam à agressão e ao crime. E aqui, não é assunto para esse espaço. Entra-se no terreno das patologias e da necessidade de ajuda profissional.
Controlamos a raiva?
Há ainda uma segunda razão para a negação desse sentimento. Grande parte da nossa raiva de cada dia não chegamos a percepcioná-la. Isso porque, assim que ela surge, automaticamente, lançamos meios de controlá-la. Aprendemos com a experiência que a raiva deve ser imediatamente combatida. É mais fácil dominá-la quando ela surge, súbita e pequena. E, geralmente, somos bem-sucedidos.
E mesmo quando ela é maior, conseguimos controlamos. Apesar do desejo de estapear alguém, maquinar vinganças, vociferar com alguém, berrar no meio da multidão. Apesar da vontade de partir para a agressão — nem que seja em direção ao objeto mais próximo. Todas essas ações podem ser vislumbradas. Mas, na maioria das vezes, nada fazemos. Contamos até 10 e respiramos profundamente. Choramos, ruminamos, argumentamos, mas acabamos por optar por estratégias menos danosas.
A outra razão para não se assumir a raiva é que ela não é um sentimento bem visto. Exteriorizar a raiva passa a ideia de descontrole, de falta de equilíbrio. É há ainda uma razão que está ligada à sabedoria do corpo, ao nosso sistema de defesa. A raiva maltrata o corpo. Quando ela é desencadeada, somos invadidos por descargas de adrenalina. Aumenta-se a frequência cardíaca e todos os músculos do corpo são tensionados. Para bem da nossa saúde física, tentamos travar essas agressões.
Loucos de raiva
Há quem se saia melhor nesse controle. O perigo é quando nos especializamos em andar em sentido contrário. Isto é, ao invés de aplacar, você alimenta a raiva. Imagine que você está atrasado para um compromisso importante e chega no terceiro sinal vermelho. A raiva já está a postos. E o que vem a sua cabeça? “Odeio chegar atrasado”. “Isso só acontece comigo”. “Se o estúpido da frente não tivesse parado, eu não estaria aqui” etc. A raiva saiu do nível um para o cinco.
A cena descrita acima mostra que o nosso estado de espírito conta muito na hora de lidar com a raiva. Se estamos num dia bom, somos mais tolerantes aos reveses. Quando estamos estressados, cansados ou com fome, ficamos mais propensos a sucumbir à raiva. Mas, nem sempre depende de estados de espíritos prévios. Há pessoas que vivem em permanente estado de pré-raiva. Os insatisfeitos com a vida, os que se julgam vítimas do destino sucumbem à raiva e, em segundos, passam para a fúria.
Eu no comando
Porém, com um pouco de autoconhecimento, podemos melhorar a forma como lidamos com o que “nos tira do sério”. Podemos aprender a modulá-la e impedir que ela fique fora de controle. Analise tudo o que desencadeia a sua raiva. Há quem — talvez por falta de reflexão — colecione ódios. Há quem pise sempre na mesma casca de banana. Se você se depara com postagens que provocam a sua ira. Simples, acione o botão do “não seguir” ou simplesmente exclua da sua lista. Se o excesso de semáforos é a primeira raiva do seu dia, escolha outro caminho.
Você percebeu — ou alguém te alertou — que você têm raivas inúteis? Verifique porque determinada situação provoca a sua raiva e reveja os seus padrões. Qual é a real importância de um prato errado no restaurante? Você permite que isso arruíne o seu dia ou você é capaz de se ajustar? O caminho é trazer lucidez à sua vida de todos os dias e evitar raivas desnecessárias. Reconheça-se. Quando você avistar a onda da raiva, verifique. É um acontecimento que merece raiva ou é porque tudo parece pior numa sexta-feira de uma semana extenuante? Ou ainda: será que você não é um especialista em transformar algo ruim, em algo ainda pior? Você pode ter razão, mas verifique. Será que você não interiorizou que o mundo é perfeito e que tudo dá sempre certo?
Pense melhor
Aproveito para alertar que as abordagens fofinhas, como os exercícios de respiração, não é uma solução de todo. É um paliativo. Diminui a frequência cardíaca, a tensão muscular e a excitação emocional, tem apenas um efeito temporário de relaxamento. Uma espécie de primeiros-socorros para o corpo. Ah! As “indicações catárticas ” de como quebrar objetos ou o saco de pancadas também não resolvem. Há estudos sobre catarse que mostram que esses atos, além de não diminuírem a raiva, aumentam a probabilidade de uma agressão posterior.
Rever padrões e refletir sobre o nosso comportamento é o caminho mais eficiente para ter uma relação saudável com essa parte da nossa humanidade. E todas essas recomendações não são apenas porque a raiva é inevitável, ela é útil. Devemos trabalhar para conviver bem com ela. A raiva ajuda-nos a identificar o que não está bem e o que precisa mudar na nossa vida. E é dela que vem a energia para mudarmos o que não nos agrada.
Raiva boa
E mais do que isso, a outra face da raiva alimenta o orgulho necessário para sustentar os nossos valores. O filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma que parte da corrupção generalizada, a impunidade e a decadência acontecem porque a raiva está sendo sufocada pela onda do politicamente correto. Para ele, a outra face da raiva é a ousadia, o brio, o heroísmo. Tenha raiva, muita raiva. Mas saiba onde, em que hora, em que medida e para quem direcioná-la.
Eu sinto raiva, mas não sou agressiva. O chute na canela do treinador do meu filho é um episódio quase único. Faz parte do meu folclore particular. Porém, esse episódio de raiva me ensinou que devo ter cautela no meu papel de mãe. Quando a informação “meu filho corre perigo” é captada pelo meu radar, vejo tudo vermelho. Eis a “loucura temporária” de Sêneca. Todo o meu treino estoico deixa de existir. Kant e Sêneca abrem passagem para a biologia. Na senda da perpetuação da espécie, o meu filho tem prioridade máxima. E a raiva me faz lembrar essa minha missão maior. Mas, o meu eu racional — e já experiente — lembra que essa missão não exige apenas proteção. Pede também equilíbrio e lucidez. Respiro fundo, arrumo a postura e acalmo o meu coração.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples
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