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Os desacomodadores
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As crianças e sua capacidade de nos fazer reparar no cotidiano cinza com muito mais cor, delicadeza e poesia

Ricardo Freire, que há duas décadas escreve aconselhando turistas com muito humor, observava desde seu primeiro livro: se você não quer se incomodar, passar algum tipo de trabalho, ou então ser desafiado, fique em casa. Aconselho o mesmo quanto a ter filhos ou, por exemplo, envolver-se com crianças em geral, elas desacomodam.

Ser adulto é ficar cada dia mais chato. Não tem outro jeito, pois precisamos administrar o foco dos olhos, sistematizar, objetivar, nos orientar, vigiar os perigos e tirar as devidas conclusões para decifrar os contextos. Sem isso não sobrevivemos e viramos crianças eternas esperando que alguém olhe por nós.

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Mas há outro tipo de educação da percepção, aos cuidados da arte, que faz o oposto desse esforço de concentração. Os artistas empenham-se em nos surpreender, no contato com enquadres ou detalhes inusitados, sua ênfase é no que a vida prática considera irrelevante. As crianças são naturais nisso: ainda não internalizaram as prioridades, os sistemas de pensamento dos que já precisam zelar, produzir e decidir. Seus olhos, ouvidos e mãos, alheios às regras, metem-se onde não era prescrito, só porque lhes chamou a atenção.

O poder da transformação

Há um vídeo na internet chamado Caminhando com Tim Tim. É o passeio de um bebê, do tipo que em inglês chamam de toddler, os novatos na marcha. Valentim e sua mãe, a palhaça e bonequeira Genifer Gerhardt, percorrem regularmente as duas ruas que separam sua casa e a da vó. Em um feliz encontro entre a arte e a infância, Genifer nos revela o que o filho a faz ver: “Pra mim calçada, ferragem, mercadinho e chegou, pra Valentim árvores, pedras soltas que toda vez tira, coloca, busca encaixe, poças d’água”, além dos encontros com vizinhos, que ele adora saudar.

O passeio do pequeno viralizou duradouramente justamente pela voz de uma mãe recuperando os sabores de um caminho que, pelo cotidiano, tende a ser sem graça. Ela o apresenta com o tempero da poesia nascida dos interesses de Valentim. Um manjar para o paladar dos adultos estressados, que só conseguem olhar em volta quando viajam. Já os percursos do dia a dia sucumbem ao medo da violência urbana, aos engarrafamentos, ao transporte público indigno, ao esgotamento da jornada de trabalho.

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“Valentim tem me ensinado que o chegar não é mais valioso que a andança”, conclui ela. Também sou grata às minhas filhas, hoje adultas, pelas frutinhas e flores das ruas que reaprendi a ver, pelos cachorros e gatos (e vizinhos) a quem fomos batizando. Um cachorro amarelo, ainda lembro, era o “Rapaz Loiro”. As crianças, inegavelmente, têm o poder de transformar em turismo o opressivo cotidiano doméstico. Quanto a nós, é preciso crescer o suficiente para não termos medo de perder o rumo se nos divertirmos pelo caminho

Diana Corso é autora do livro Tomo Conta do Mundo — Conficções de uma Psicanalista.

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