O que aprendi com o inverno e a passagem das estações do ano
Da mudança de país, do Brasil para a Inglaterra, jornalista conta sobre a rotina do inverno longe de casa e o quanto sair da zona de conforto pode ser, apesar de difícil, de uma riqueza enorme
Inverno. “No meu pátio tem um mundo com o Brasil e a Inglaterra”, diz minha filha mais nova apontando para um grande mapa desenhado no muro da escola. Deixei as duas lá mais cedo, e hoje de manhã já ventou, nevou, fez sol e agora está nevando de novo.
Os ingleses são fissurados pela previsão do tempo e já me vejo checando informações sobre o clima no noticiário todas as noites e fazendo minhas previsões, olhando pela enorme janela na sala do apartamento que alugamos.
O medo que eu deveria sentir do frio logo se transformou em admiração. São dias frescos, claros e com uma luminosidade diferente. Os ingleses dizem que são crisp days.
De fato, penso que é possível morder a manhã enquanto ando na rua voltando da escola das meninas. E, se eu mordê-la, uma fina camada de gelo irá se partir em mil pedaços menores, que compõem meus dias aqui.
Entre a realidade e o sonho
Em pouco mais de um mês vivendo no norte da Inglaterra, tudo ganha um aspecto de sonho. De manhã, contamos uns para os outros com o que sonhamos: o avô de uma colega no Brasil usando shorts coloridos, estar flutuando em bolhas de sabão, uma porta difícil de abrir.
A experiência vai se infiltrando aos poucos em nós e a ansiedade do início dá lugar a uma tranquilidade intensa. As meninas comemoram a neve que se acumulou nos galhos das árvores, carros e calçadas, e é possível sentir o silêncio branco e macio quando vamos à rua para ver o frio de perto.
O efeito de estar aqui vai se mostrando para nós em detalhes do nosso cotidiano: sabemos de cabeça o horário em que o ônibus passa, minha filha mais velha entende intuitivamente todas as instruções dadas pela professora e a mais nova canta junto a musiquinha do canal infantil da TV. “Mamãe, parece que a gente está dentro de uma história.” Respondo: “A gente está. Dentro da nossa história”.
Estamos nos preparando para o inverno?
A preparação para o semestre na Inglaterra foi grande, cheia de incertezas e, quando finalmente tudo se acertou, recebi inúmeros conselhos. “Está preparada para o frio?” “Já está dando vitaminas para as crianças?” e “Vai levar sacos de feijão-preto, não vai?”.
Mas, ao contrário do que eu pensava, não é possível moldar nossa experiência, é ela que vai aos poucos nos moldando. Explico para as meninas que saudade não precisa ser algo ruim. Sentir saudade é melhor do que não sentir nada.
Falo sobre a importância de estar aberta para novas experiências, para que o mundo ao redor da gente fique grande, mas ao mesmo tempo para que ele caiba nas nossas mãos.
As duas me olham intrigadas, sabendo que estou dizendo alguma coisa grandiosa, entendendo mais com o coração do que com a cabeça.
Passeando por um parque com lago, patos, árvores peladas e grama de um verde intenso, uma pequena lágrima escorre pelos meus olhos.
“Olhem bem para esta paisagem, meninas. Olhem o azul brilhante deste céu. O mundo é um lugar incrível e temos sorte de estarmos vivas.” As meninas escutam e avistam um esquilo.
Penso que, em um futuro não muito distante, elas vão lembrar da mãe delas, chorando de alegria ao caminhar no parque, mordendo a manhã com os dentes.
Minha filha mais velha se pergunta em voz alta: “E se eu esquecer de como se fala português?”. Digo que não esquece. “É língua materna, está dentro de você.” Ela pergunta o que é língua materna. “Da mãe. Pode esquecer, se quiser, porque depois vai lembrar. Pode sentir saudade, porque depois encontra de novo.” Respiramos fundo.
Inverno de saudades inesquecíveis
Pergunto-me em silêncio se para mergulhar de verdade na experiência é preciso esquecer. Como juntar o que ficou com o novo que está chegando?
Mas, de forma natural, uma coisa vai se empilhando na outra e o conjunto é um todo que nunca será esquecido. Está dentro de você.
A escola fica próxima à igreja de São Matias. Preenchemos no formulário de inscrição que as crianças não têm religião, mas ver aquela igreja todos os dias, com um topo alto, alcançando até o céu, traz uma paz inexplicável. Sob a neve, vento ou sol, a igreja está sempre ali.
Na noite anterior ao primeiro dia de escola, concordamos que meu pai, falecido há pouco mais de um ano, irá estacionar sua nuvem em cima da igreja e proteger as meninas.
Arrumando a cozinha, reparo que as migalhas deixadas no chão e na pia não juntam nenhum tipo de inseto, bichinho ou barata. Entretanto, no Brasil, em menos de cinco minutos, uma migalha já está rodeada por todo tipo de vida.
Penso que é preciso explicar para as meninas as diferenças e contrastes entre a Inglaterra e o Brasil. Mas me engano. Elas já olham o mundo com os próprios olhos e me fazem perguntas variadas. Escolhem com desenvoltura o almoço que irão comer na escola, tiram e colocam o gorro sem ajuda.
Enfim, as pessoas seguem seu caminho, no vento gelado, mãos fechadas dentro dos bolsos, muitas camadas de roupa. Por vezes, parecem também curiosas para saber quem somos. Hoje, vi flores coloridas no canteiro começando a brotar. Deve ser a nova estação chegando.
Depois do inverno, a primavera
Lord of the Dance é uma música tradicional irlandesa que celebra a primavera. As meninas estão com as outras crianças, vestidas com o uniforme, cantando em coro músicas que não conhecemos mas que nos emocionam de forma intensa.
A diretora da escola pede aos pais que se levantem para cantar junto, e meus óculos embaçam logo que começo a chorar. Ouvi-las cantando com colegas vindos de outros lugares do mundo a letra que diz algo sobre dançar onde quer que se esteja e sobre nunca morrer, e estar vivo na dança dos outros, é algo incrível.
O sol aparece, esquenta nosso rosto, as flores crescem. Contudo, as nuvens se movem, fica nublado e pode chover. O tempo cinza traz aconchego e o sol traz alegria e céu azul.
Pegamos uma bebida quente e vamos para dentro ou ficamos do lado de fora admirando a luz da nova estação. Já sabemos que daffodil é um narciso, já sentimos os dias mais compridos, já podemos usar algumas camadas a menos de roupas. O vento já não é frio e espalha o pólen no ar.
Aprendemos palavras, frases e ideias em uma língua nova e fresca. As meninas transbordam em casa comigo, testando meus limites, e deitam na água da banheira ruminando o dia que acabou de terminar.
Ainda está claro lá fora, mas já vamos jantar. Provamos novos sabores, e nosso corpo sente a mudança no paladar. Dia após dia, caminho pela cidade. Pernas e braços soltos no mundo. Estou no coração das coisas.
Tudo está em transição
De manhã o sol está quente e, a cada hora que passa, esquenta mais. Na rua, as pessoas ainda não sabem o que vestir. O calor nos provoca alegria e uma leve confusão. “Hoje aqui está parecendo o Brasil.” O dia seguinte amanhece mais fresco, cheio de sol e claridade. “Um dia mais confortável”, diz a previsão.
Os meses passam e sentimos a vida correr naturalmente. Assim sendo, saio com as meninas num domingo. Um pouco de chuva, um pouco de frio, um pouco de sol.
Pegamos o ônibus e a mais velha desfruta de sua autonomia passando seu bilhete pelo motorista. Encontra um assento vazio e segue olhando a cidade pela janela. Já fala seus thank yous e sorries e responde às perguntas que fazem a ela.
Sento com a mais nova em um assento mais atrás, dando a mão para ela e ajudando a organizar seu cansaço do dia. Juntas decidimos nosso caminho e programação enquanto andamos. Um parque, um restaurante, entrar numa loja para olhar.
Sentamos as três em um banco perto do rio. O gramado cheio de flores e as meninas correndo entre as árvores. Essa é a minha ideia de liberdade e felicidade. A Inglaterra já é nossa home from home.
ANA SIGNORINI é jornalista, carioca, e agora está descobrindo como é o verão em terras inglesas.
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Conteúdo publicado originalmente na Edição 199 da Vida Simples
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