Sobre atrasos, imprevistos e uma pitada de mau humor
Nesta crônica da vida, o português Didier Ferreira nos presenteia com uma fotografia de uma manhã comum, daquelas em que prevemos que não vamos nos atrasar porque já temos tudo esquematizado.
Nesta crônica da vida, o português Didier Ferreira nos presenteia com uma fotografia de uma manhã comum, daquelas em que prevemos que não vamos nos atrasar porque já temos tudo esquematizado. Talvez, se fôssemos máquinas isso poderia ser verdade, mas a automatização não combina muito com os nossos sentidos humanos.
Ontem eu tinha tudo programado para hoje chegar na hora certa à escola. Com a roupa previamente preparada, a mochila e a comida prontas, restar-me-ia apenas despertar meia hora antes de sair de casa e em meia hora tomar meio litro de água, um duche, escovar os dentes, passar o creme no rosto e no corpo, perfumá-lo, vesti-lo, sair.
Mas, acordei uma hora antes do despertador tocar. Preguiçoso, deixei-me estar na ronha, virando para um lado e para o outro na cama, pensando em mil e uma coisas ao mesmo tempo, com preocupações difusas e memórias acidentais brotando de lugares recônditos. Sem sono. Numa semiconsciência. Com o corpo exausto, reclamando descanso.
Olhei para o relógio. Oito minutos haviam passado. Apenas oito minutos desde a última vez que o mirara. Quando a sensação que eu tinha era de ali ter estado há já muito tempo me debatendo com a preguiça. Afinal, a eternidade era uma nuvem ilusória. Faltavam quarenta e um minutos para o despertador tocar. Uma hora e nove para sair de casa. Treze minutos. Tinha tempo.
O que me acontece quando tenho demasiado tempo
Não, não soube dar bom uso ao tempo. Porque tempo em excesso tende a ser perverso para mim.
Nestas ocasiões, abandono a cama numa lentidão tão síncrona com a moleza do meu próprio corpo, tão desfasada do ritmo circular dos ponteiros marcados no relógio, que a certeza de sair de casa a tempo não é mais do que uma grande ilusão.
Quero dizer, o que sucedeu é que me preparei muito lentamente. Saí da cama. Fui à cozinha. Pus a água a ferver para o chá. Naveguei pelas redes sociais sem saber exatamente à procura de quê. Até que me recompus. Perdia tempo passando em revista stories e perfis de amigos e desconhecidos conforme aparecessem destacados no ecrã. E o rasto de gostos marcados a vermelho despertavam-me um estranho mal-estar. Não poderiam ser honestos. Que honestidade há quando se marcam de coração um rol de imagens difusas, vistas apressadamente, sem tempo nem empenho?
Abandonei a leitura dos comentários. Passei para a caixa de e-mail. A água ferve. Desliguei a chaleira. Verti o líquido para o bule. Deitei-lhe duas saquetas de uma infusão de chá verde e jasmim. Esperei. Sete minutos passaram. Tempo que usei para limpar correspondência pouco relevante, newsletters, publicidades. O alarme tocou. Oito minutos. O tempo que permito as folhas soltarem os seus sabores na água. Oito minutos, nem mais. Tirei, portanto, as saquetas do bule. Enchi uma caneca de chá. Fui à sala. Liguei a coluna. Pus música, baixinho. Segui para a casa de banho. Despi o pijama. Entrei no poliban. Deixei-me estar longos minutos — cinco, dez, quinze — debaixo do chuveiro, imerso em vapor, gozando a sensação das gotas pesadas de água caindo-me sobre o cocuruto.
Finalizei o banho. Sequei-me. Ainda sem roupa, escovei os dentes com a máquina elétrica durante os seus dois minutos programados, depois com a escova normal, sobretudo para limpar a língua. Gorgolejei uma e outra vez com o sentido na música que vinha da sala. Passei a esfera do desodorizante nas axilas. O óleo de coco na cara, na cabeça, no peito, nos ombros, nos braços e no tronco, no sexo e nos glúteos, nas pernas e nos pés. Limpo, caminhei descalço e nu para a cozinha, a fim de bebericar o meu chá.
Entro na cozinha. Ali está o telemóvel. Pressiono sobre o visor com o dedo ainda húmido. E,
— fod***!,
8:34, já estou atrasado. Tenho seis minutos para sair de casa. Não dá. Dá sim.
Enquanto houver esperança, tentarei
Corro para o quarto. Apresso-me com a roupa. Visto os boxers, as meias, a calça que fica pendurada nas pernas, caindo-me por elas abaixo,
— que mer**, por que é que não pus primeiro o cinto?,
a t-shirt, a camisa com as fraldas por dentro da calça que
— pu** que pariu!
subo numa pressa deveras inimiga da perfeição, tanto que quase entalei o prepúcio no zíper ao fechar a braguilha, salvo pelo reflexo e pelo boxer que não permitiram outros danos para além do susto, há ainda a gravata para lançar ao pescoço, tem o nó feito, fácil, visto a malha, o blazer. Estou pronto. Suspiro fundamente. Dois minutos.
Tenho a mão na maçaneta quando lembro o chá por beber,
— deixa estar, fica para mais logo,
e a carteira por pegar, que o telemóvel já o tenho no bolso. Reabro a porta de casa, jogo a mão à carteira sobre a mesa da sala. Pronto. Porta trancada. Chamo o elevador, cismando com o chá sobre o balcão da cozinha, mas, não é isso, o que é, outra coisa, que outra,
— a agenda!
Recordo que a levei comigo para a cozinha. Queria rever o plano da primeira aula ainda indefinido enquanto a água do chá aquecia e não voltei a pô-la na mochila. Confirmo,
— não está aqui!,
com o dedo pressionando freneticamente o botão com o número 3 marcado no centro,
— oh, que mer**!,
porque a demora da porta do elevador me parece, neste preciso instante, refletir toda a lentidão que caracteriza este meu país,
— é tudo tão lento, por**, tudo lento nesta mer**!,
pois sobe o elevador para o terceiro piso e eu saio dele disparado, com a chave em riste nos dedos, encaixo perfeitamente à primeira na fechadura, rodo uma e duas vezes, está a porta aberta, corro para a mesa, pego na agenda mas não sem antes ter embatido com o braço na caneca com o chá quente e entornar um bom bocado sobre a bancada e vê-lo escorrer para o chão, dourado,
— …,
confuso, abandono o apartamento chateado comigo mesmo, numa correria semelhante a de um ladrão abandonando o local do crime sem ter concretizado a intenção e, para agravar a sua situação, chegar ao exterior da residência, não dar imediatamente com o veículo que o tirará do lugar do crime.
No meu caso, não dou com o elevador, alguém o chamou, por isso vou de escadas numa grande precipitação para apanhar o autocarro e, aqui chegado, suado, com muita tristeza, vejo-o fazer a curva, ao fundo.
“Outra vez atrasado”, penso comigo mesmo.
Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:
duche: banho rápido
ecrã: tela
rasto de gostos: vestígio de likes (no Instagram)
saquetas: saquinhos
coluna: rádio
casa de banho: banheiro
poliban: box do chuveiro
telemóvel: celular
húmido: em Portugal, a grafia manteve o “h” de úmido
t-shirt: anglicismo para camiseta
braguilha: parte frontal da calça onde está o zíper
autocarro: ônibus
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DIDIER FERREIRA (@didier.ferreira) é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
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