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Viveiros de livros
Martin Gurfein e Liane Neves
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Na livraria querida, há vida entre as estantes e no silêncio dos livros. Visitá-la é uma experiência insubstituível

O caixeiro-viajante Romeo dirige pelas estradas do vale do rio Pó, na Itália, a fim de vender roupas. Ao conhecer uma mulher chamada Ágata, quer saber em que ela trabalha. “Sou dona de uma livraria”. Cansativo? “Sim, mas é o que eu sempre desejei. É meu viveiro.”

Quando pronuncia “Mio vivaio”, metida em um improvável vestido cor-de-rosa, Ágata diz muito em apenas duas palavras: na livraria querida a vida brota entre as estantes e do silêncio eloquente das páginas escritas. Difícil não concordar. A boa livraria é um viveiro. Um viveiro de livros.

No longa italiano “Ágata e a Tempestade”, Ágata é a livreira que queima lâmpadas e provoca curto-circuito quando fica emocionada. Enquanto tenta encontrar o equilíbrio, apaixona-se por um cliente, ajuda o irmão a desvendar segredos de família, dança de pés descalços e olhos fechados no chão frio da cozinha. Lê muito. Na Livraria dos Quatro Cantos, sua missão é colocar o livro certo nas mãos certas.

Quem se dispõe a sair de casa e se envolver com o mundo encontra bastante significado em livrarias como a de Ágata. Posso me imaginar em uma delas: a porta se fecha atrás de mim. A sineta avisa que eu cheguei. Esses lugares costumam ser maiores do que aparentam – crescem na vertical das estantes, no arranjo dos objetos, na desordem perfeita. Em gostosa incerteza, passeio pelo acervo que o livreiro escolheu montar.

Inclino a cabeça ao percorrer as lombadas e na ponta do dedo tiro um exemplar da estante. A capa tem uma gostosa textura acetinada. Da janela incide uma luz tranquila. A poltrona de chenile afasta a brutalidade. Lá fora, na chapelaria imaginária, ficam as encrencas. Prazos, burocracias. Mal-entendidos, decisões difíceis. Feito óculos escuros na fotofobia, a ficção ajuda a enfrentar a realidade excessiva.

Leio epígrafes. “Passavam-se os anos, e a única pessoa que não mudava era a jovem do seu livro”; “o barco de cada um está em seu próprio peito”. O colofão é quase mastigável: tipografia Electra, papel pólen soft oitenta gramas. O aroma das páginas faz lembrar daquele golpe de perfume no fim da tarde de um domingo azul. Doutor, divago. Abandono o que não vou comprar, vestígios de dúvida. Levo o exemplar acetinado.

Alberto Manguel escreveu, em A Biblioteca à Noite (Companhia das Letras), que “folhear um livro ou vaguear entre as estantes é parte essencial do ofício da leitura e não pode ser inteiramente substituído pela rolagem de uma tela, assim como a viagem real não se deixa substituir por livros de viagens”.

Ir até a livraria é uma experiência sensorial insubstituível. Sim, é inegável a conveniência da loja online e das tentadoras ofertas a um simples clique, mas quero mais do que digitar login e senha por padrão. Quero atravessar a rua e me mover. Às vezes. Livraria, sebo, internet. Que os vazios das estantes sejam preenchidos em todos esses lugares.

O importante é usar o tecido das horas de um jeito consciente. Se desejamos que as pequenas continuem com sua deliciosa vocação, porque nos fazem bem e ampliam nossos horizontes, precisamos sair do marasmo e ir até elas.

A curadoria essencial

Falei com o jornalista Ricardo Lombardi, dono de um sebo em uma rua de paralelepípedos no bairro de Pinheiros, em São Paulo. É o Desculpe a Poeira. Lembrei da Ágata de pés descalços: deve ser uma delícia poder viver no meio dos livros novos, mas o que dizer dos antigos, que cheiram a histórias de sobrevivência? Foram grifados, anotados? Há uma foto perdida no meio? Um bilhete? Uma declaração de amor?

Manuseá-los, reencontrar o que foi esquecido ou abandonado, e merece ser visto outra vez, descobrir o que está por ler, achar alguma raridade por encomenda. Ler durante boa parte do dia, olhar a rua. Garimpar velhas novidades. Despachar pedidos para quem está bem longe. Lidar com a longevidade concreta do livro – ele sobrevive aos donos e dialoga com o tempo.

Lembro outra vez de Manguel, que disse: “A leitura muitas vezes exige lentidão, profundidade e contexto; nossa tecnologia eletrônica ainda é frágil e, por seu ritmo de mudança, muitas vezes não nos permite recuperar o que foi registrado em formatos obsoletos…”.

Ricardo imagina uma possível “retomada de equilíbrio” – o esgotamento do excesso de relações virtuais, a contracorrente das grandes lojas. “Quando entram nessas livrarias, a princípio as pessoas se sentem um tanto perdidas, sem saber o que é espaço comprado por editoras, o que é realmente bom.

Livros importantes muitas vezes se perdem em cantos obscuros. E se a internet funciona bem quando você sabe o que quer, ainda falha nas sugestões personalizadas. Você gosta de poesia, mas como uma só vez comprou jazz, o sistema continua oferecendo jaz­z.” É a deixa para as pequenas. “As que existem há algum tempo, e as novas e os sebos não precisam de um grande faturamento. Elas podem desempenhar o papel original e mostrar o que é realmente interessante”, conclui.

Em uma casa no Batel, em Curitiba, a Arte & Letra é editora, livraria e café. Pertence aos irmãos Thiago e Frede Tizzot. Os verbos mais conjugados por ali são vaguear, ler, beber, comer (um pedaço de torta). Comprar. Esbarrar. Espantar-se (com o nascimento do livro). “Outro dia, o Frede estava na varanda fazendo as matrizes das xilogravuras da nossa coleção artesanal”, conta Thiago. “Os clientes paravam, olhavam, perguntavam e começavam a entender o processo até a edição pronta. É um envolvimento diferente com o objeto.”

Ao trabalhar títulos de literatura que acham bons e merecem ser conhecidos, os livreiros ignoram sem remorso o que não se enquadra no critério. Fogem do comum, das listas de mais vendidos. A laboriosa curadoria inclui a confecção de uma revista literária. Entre os achados, contos de autores fora de catálogo ou nunca traduzidos no Brasil.

Ilhas de virtude

Professor de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Chico Marshall vive em Porto Alegre. Uma das experiências fundamentais em sua formação literária aconteceu quando era meninote. “Vendi minha bicicleta e comprei a coleção Gênios da Pintura no sebo.”

Chico trabalha numa área humanística especializada, os estudos clássicos, e usa muito os meios eletrônicos. “Mas isso não substitui o contato cultural, o ambiente de livro estético e cordial de uma loja pequena, aquele perfume de sândalo que escapa de um livro no sebo. O prazer de ter em mãos o artefato, a edição, a arte. Às vezes pago um pouco mais em alguns exemplares, porque quero que o negócio perdure.

No arquipélago que é a cidade, cada um constrói suas rotas de sobrevivência. Não são muito generosas, mas tu tens museus, teatros, livrarias. Perder essas ilhas de virtude cultural seria viver no deserto urbano”, diz ele.

Uma das lojas preferidas de Chico é a Bamboletras, da jornalista Lu Vilella, em Porto Alegre. Fica na Cidade Baixa, vizinha ao Cine Odeon. Fundada em 1995, no início dedicou-se a livros e discos para crianças – o portfólio é uma referência. Já faz tempo, porém, que passou a repartir o espaço com poesia e literatura para adultos.

É um ciclo: formam-se novos leitores desde a barriga, no enxoval literário, então eles nascem, crescem e continuam por ali. Lu Vilella começou a ler pelos irmãos Grimm e nunca mais parou. De Cecília Meireles a Mário Quintana, de Dostoiévski a Alice Munro, tudo o que será ou não vendido em sua loja sempre passa por suas mãos. “É um privilégio trabalhar o acervo com meu gosto literário.”

Há muitos anos Lu mostrou uma edição especial de O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, para a oficial de justiça e estudante de filosofia Cláudia Beylouni Santos. Ela conta que sua filha era bem pequenininha naquela época. Hoje tem 18 anos. “Sophia ainda não sabia ler, mas o pai lia para ela. Virou aficionada por livros, conhece tudo de Rudyard Kipling e tem um interesse enorme pelo comportamento humano, despertado na literatura. Talvez aquela edição não caísse em nossas mãos se não fosse pela Lu, que tem um papel importante na formação literária da Sophia”, conta.

Peço para Cláudia me dizer o que sente quando vai a uma loja assim. “Ir até lá nos faz menos personagem de uma abstração, somos mais do que um ícone na tela. Quando tu tens um livro raro, quando não sabe o que tu quer ou em qual livro está o que tu quer, precisa mais do que da livraria pequena, precisa do bom livreiro. Essa pessoa que conhece e mostra os encantos dos livros”, diz.

A chuva e o acaso

São Paulo. Verão de 2015. A tarde estava abafada e bastante úmida depois da chuva. Os carros cortavam a água empoçada no meio- fio. Quando finalmente alcancei a garagem onde funciona o sebo Desculpe a Poeira, meu caminho naquele dia, tudo estava em seu lugar: o livreiro entretido com as tarefas de livreiro, os destaques em uma espécie de ilha no meio da pequena loja. Nas bem arrumadas prateleiras, não há poeira alguma.

Eu só podia comprar um, mas queria vários. Perguntei por As Irmãs Makioka, de Junichiro Tanizaki. Torci, no fundo, para não ter. Imaginei que seria caro e eu não conseguiria resistir. Não tinha. Choveu forte. Esperei por uma hora. Perdi a conta de quantas voltas dei na ilha central.

Ao som de jazz e bossa nova, li prefácios e várias contracapas. A chuva cedeu e eu finalmente saí. Alguns passos adiante, me dei conta que não tinha ficado presa no sebo por mais de uma hora, como erroneamente escrevi em uma mensagem de texto. Na verdade, fui acolhida por ele. Sorte estar em um lugar onde circula a energia dos livros. Levei comigo a obra O Jornal de Antônio Maria. Não sabia, mas eu o procurava desde aquela viagem a trabalho para o Recife. Por acaso, achei.

Viviane Zandonadi acha que as livrarias são lojas de sonho que vendem livros. Ou lojas de livros, que vendem sonhos.

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