O que é liberdade de expressão?
A nossa capacidade de dizer ou escrever aquilo que pensamos ou desejamos, respeitando a gente mesma e o outro, está intrinsicamente relacionada com o direito de caminhar no mundo com mais autenticidade, autonomia e também presença
Quando eu tinha 17 anos, uma das minhas aulas favoritas no Ensino Médio era a de redação. Era fascinante e assustador poder expor minhas ideias em forma de texto. Usando não apenas minha opinião, mas fatos, a história, dados.
Meu professor, Norberto, deve ter visto minha animação com a escrita e me incentivou durante os vários anos em que foi meu mestre na difícil tarefa de trabalhar com palavras.
Nunca fui uma pessoa competitiva, no entanto, eu tinha o desejo de ganhar a competição de redação da escola. Estudei no mesmo colégio desde os 12 e nunca havia conseguido o primeiro lugar. Medalhas no futebol de campo ou de salão não me importavam tanto quanto aquela, a ser conquistada tecendo textos argumentativos.
Finalmente, no terceiro ano, meu desejo foi realizado. Venci a competição e fui premiado como o melhor escriba da escola. Havia até uma cerimônia de entrega do prêmio, realizada no mesmo dia em que o colégio distribuía comendas aos alunos por seu desempenho acadêmico.
Meu nome foi chamado ao palco, fui cumprimentado pelo reitor, pelo meu professor de redação e desci com um prêmio em mãos. Ao abrir o pacote, vi um livro grosso, A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari.
Trata-se do primeiro de cinco volumes escritos pelo jornalista a respeito do período da Ditadura Militar do Brasil, que foi de 1964 a 1985. Na página de rosto do livro, uma dedicatória do professor de redação.
O lembrete me incentivava a usar as palavras para evitar que tempos obscuros como aqueles que o livro de Gaspari descreve voltassem ao nosso país.
Fiquei muito satisfeito com o bilhete, claro, mas só fui entender a importância e a influência daquela mensagem mais de uma década mais tarde, quando eu já atuava como jornalista profissional.
Enfim, o que é liberdade de expressão?
Você deve estar se perguntando por que estou contando essa história em um texto cujo título se propõe a explicar a liberdade de expressão. Essa resposta virá em breve. Primeiro, vou explicar o que é liberdade de expressão.
A ideia de que os cidadãos têm o direito de dizer o que bem entendem é antiga. Os gregos antigos (sempre eles!) já acreditavam que era essencial poder debater ideias para chegar às melhores decisões.
Isso se refletia nos inúmeros espaços de conversa existentes nas cidades e nos órgãos de governo. Até os tribunais recorriam à deliberação pública para deferir sua sentença. Nas ágoras (praças), era possível ouvir e ser ouvido, apresentar suas ideias e conhecer as de outras pessoas.
Ao longo dos séculos, o conceito de liberdade de expressão se desenvolveu e se tornou um dos pilares das sociedades em que vivemos. Ter o direito de expor ideias se tornou possível não apenas nas praças públicas, mas também por meio de boletins, livros, revistas, redes sociais, grupos de discussão, etc. Poder opinar e expressar preferências é um dos elementos que definem uma grande parte do mundo em que vivemos.
Uma lei que se pratica com responsabilidade
Em 1215, o documento Magna Carta, uma espécie de Constituição, já determinava que os ingleses deveriam poder debater ideias e expressar suas opiniões. Séculos mais tarde, em 1789, a Revolução Francesa tornaria famosa a expressão “direitos do homem” e estabeleceu que a liberdade de expressão seria um deles.
Depois, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Organização das Nações Unidas determinou que todos os países do mundo dessem condições a seus cidadãos para que, entre outras coisas, opinem a respeito dos assuntos comuns a todos.
É tão fundamental que o direito à liberdade de expressão está na Constituição do Brasil. O artigo quinto garante que são livres “a manifestação do pensamento” e “a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação” no Brasil.
Apesar dessa ideia ser poderosa e valiosa, ela também pode levar as pessoas a agir e pensar de modo extremo, distorcendo seu propósito. Por isso, precisamos entender também o que a liberdade de expressão não é.
O que não é liberdade de expressão?
Não se trata de falar tudo o que vem na sua cabeça sem sofrer nenhuma consequência. Qualquer direito tem também seus limites. Insultar alguém, divulgar informações falsas, promover discurso de ódio contra minorias são abusos da liberdade de expressão – e não o exercício dela.
Outro engano comum é achar que alguém está abusando da liberdade de expressão porque tem uma opinião contrária à sua. “Discordo profundamente do que essa pessoa está falando, por isso ela não deveria poder dizer o que está dizendo.”
Viver junto, numa sociedade democrática, significa não só poder se expressar livremente (respeitando os outros), como também aceitar que existem opiniões diferentes das suas.
Você não precisa gostar delas, pode até não querer ouvi-las, mas não pode impedir que elas existam. Sendo assim, iberdade de expressão tem que valer para todos, não importa quem sejamos.
O contrário da liberdade de expressão é a censura, ou seja, o poder de algumas pessoas determinarem o que pode ou não ser dito. Sociedades plurais e respeitosas não impedem ninguém de dizer e/ou expressar em diferentes formas o que pensam.
A censura é característica onipresente em regimes autoritários, uma vez que ambos não dão espaço a opiniões que discordem das oficiais.
Por que a liberdade de expressão é importante?
Sem liberdade de expressão, não temos a liberdade de nos reunir e discutir assuntos do nosso bairro, cidade ou país. Ela é, portanto, necessária para que a política exista e organize-se em partidos, em grupos de interesse; precisamos dela para protestar nas ruas ou elogiar ideias e pessoas de quem gostamos.
Liberdade de expressão é um dos pilares da imprensa. Só assim ela pode investigar, questionar e explicar os acontecimentos. Só assim posso escrever esse texto com a certeza de que ninguém irá me punir caso discorde do que estou dizendo.
Se eu fosse adulto durante a ditadura militar brasileira, teria mais dificuldade para exercer minha profissão. Quando o governo não gostava de uma matéria que seria publicada, ordenava aos editores que a tirasse.
Muitas vezes, os militares substituíam o artigo por uma receita de bolo. Pessoas morreram (e continuam a morrer) pelo mundo todo por desejar exprimir suas opiniões de maneira livre.
E era essa exata mensagem que meu professor Norberto tentava me mandar em sua dedicatória. Ele teve a experiência de quem viu de perto os horrores do autoritarismo. E por essa (legítima) razão, ele me mostrou o quanto eu (e todos nós) somos pessoas privilegiadas. Isso porque temos o direito de escrever o que quisermos, sem medo de violência ou retaliação.
Demorei para de fato entender o que meu mestre estava dizendo. Apreciava seu gesto, claro, e tinha uma boa noção dos estragos causados pelo regime militar no nosso país.
No entanto, só compreendi a importância real de suas palavras ao experimentar na pele (ainda que numa escala ínfima) os perigos da falta de diálogo, da desinformação, do fanatismo político.
Liberdade de expressão é com respeito e consciência
A organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF) publica em um relatório anual um ranking de liberdade de imprensa pelo mundo.
No documento mais recente, a conclusão foi a de que aconteceu uma “expansão de um sentimento de ódio dirigido aos jornalistas”. No Brasil, “a liberdade de informação está longe de ser uma prioridade para os poderes públicos, avalia a RSF. Nosso país caiu de posição de 2017 para 2018: estamos na 102a posição, de um total de 180.
Enfim, me vejo aqui, quase duas décadas depois, com o privilégio de conversar com todos vocês graças a séculos de compreensão de que o direito de falar livremente é essencial para a existência do ser humano tanto individualmente quanto em sociedade.
Com preocupação, vejo também que há quem tente impedir os cidadãos de expressar suas opiniões, tenham elas relação com política ou não.
Por isso, espero que meu professor tenha passado uma lição não só para mim, mas para todos os cidadãos. Afinal, quem é que gostaria de perder o direito de ter uma voz, de se expressar? Espero que ninguém.
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Sobre a Série Nossas Questões
A SÉRIE NOSSAS QUESTÕES é uma parceria entre a Vida Simples e o Me Explica (meexplica.com), site de jornalismo explicativo fundado em 2013 por Diogo Antonio Rodriguez. Durante seis edições, iremos destrinchar temas importantes relativos ao viver junto: democracia, direitos civis, direitos humanos, justiça, igualdade e liberdade de expressão.
DIOGO ANTONIO RODRIGUEZ formou-se em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo e em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Jornalista há 10 anos, também deu cursos sobre a importância da política para todos, na Unibes Cultural e na Virada Política, ambos em São Paulo. Em 2013, criou o site Me Explica, para tornar as notícias mais acessíveis.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 206 da Vida Simples
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