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O quarto das roupas
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Uma antiga peça que herdamos é capaz de carregar afeto e promover encontros improváveis entre gerações

Meu amigo é o nono filho de um total de 11. Na casa onde cresceu com os pais, irmãos, primos e agregados que vinham do interior, nada era exclusivo de alguém. Só aos 12 anos ele ganhou sua cama, parte do beliche num quarto onde dormiam seis.

Naquela casa não havia o meu ou o seu guarda-roupa, e sim o quarto das roupas. Na área onde seu pai foi construindo puxadinhos para caberem mais pessoas, um barracão com prateleiras até o teto abrigava peças de todas as épocas: saias rodadas das tias, ternos dos avôs, mil e uma calças e camisas, um enorme saco de meias – encontrar um par era tarefa quase impossível. “A gente saía com um pé verde, outro azul, calçando um tênis dois números maior”, conta meu amigo. Naquele quartinho, as roupas é que pareciam escolher uma pessoa para vestir.

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Quando entrou para a faculdade, meu amigo ainda não tinha seu próprio guarda- roupa. Então adotou as calças largas de tergal do pai, as camisas floridas de um tio, os tênis de algum antepassado. E assim criou seu estilo. Como quem herda genes de seus ascendentes, construiu sua identidade com as peças dos outros. Meu amigo é colcha de retalhos e afetos.

Como cada coleção particular é um inventário de idas e vindas, um armário pode ser feito de faltas, mais do que presenças, caminhos e descaminhos vários. Mesmo acidentalmente, cada um de nós é estilista de si mesmo na composição dessa coleção que nos apresenta ao mundo.

Roupas e os encontros

Uma antiga peça é capaz de promover encontros improváveis: o avô veste o neto que sequer chegou a conhecer. E assim as roupas falam de quem se foi, tanto quanto de quem está aqui. Lembro do suéter mostarda de gola alta que herdei do meu pai. Vesti-lo era como abraçar a saudade.

Roupas abrigam cheiro e memória, seguem marcadas por quem as usa. E, como numa espécie de reencarnação, ganham vidas novas ao vestir outras trajetórias. Paradoxalmente, guardar as roupas não as preserva. Se o uso desgasta, o tempo é implacável com o que não se movimenta. Os tecidos pedem a presença orgânica para continuar existindo. O vestir é humano: roupa e corpo se misturam, tecidos tornam-se extensões de nossos corpos e almas, e quase sempre sobrevivem a nós.

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Roupa é refúgio e expressão. E ajuda a contar quem somos, não só para o mundo, mas para nós. Vestir é desnudar-se.

Cris Guerra lançou seu sexto título, Escrever uma Árvore, Plantar um Livro, e roda o país levando novos olhares sobre a vida. @eucrisguerra

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