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Como se tornar mais sustentável
Noah Buscher | Unsplash
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“A senhora quer que eu faça como?” O rapaz do açougue do supermercado me olhava espantado. “Não, vou ter que falar com o gerente primeiro”, ele insistiu, segurando o vasilhame que eu havia levado para colocar as carnes. Ele não foi o primeiro a observar estupefato a minha tentativa de fazer compras levando menos materiais plásticos para casa: um mercado de orgânicos em Salvador, onde moro, já havia negado meu pedido para comprar os grãos que estavam a granel usando meus potes. O estranhamento das pessoas é bem constrangedor para uma marinheira de primeira viagem no campo da sustentabilidade como eu.

E pior: minhas referências nesse tema vinham de fora – e eram diferentes da realidade da minha cidade. Em lugares como São Paulo, Curitiba, Porto Alegre e, mais distante, em Nova York, assisto a evolução de aplicativos que indicam onde comprar orgânicos e também observo uma boa variedade de lugares para adquirir produtos que nos permitem fabricar em casa os próprios cosméticos e materiais de limpeza e higiene pessoal. Em Salvador (BA) estamos começando, o que não é ruim, mas torna tudo um pouco mais complicado.

Dentro do universo de possibilidades de uma vida mais conectada com meus valores ecológicos, conheci o conceito de produção zero de lixo com a americana Lauren Singer, autora do site Trash is for Tossers e criadora da marca de produtos de limpeza orgânicos e veganos The Simply Co. A moça recém-formada em estudos do meio ambiente se incomodava com a quantidade de lixo que produzia todos os dias e do plástico que acumulava em casa. Por isso, decidiu tentar diminuir a produção de lixo para próximo de zero. O chamado zero waste lifestyle. Em três anos, tudo o que Lauren produz de lixo encontra-se num pote médio de vidro, e se constitui de etiquetas de roupas, alguns adesivos de preços e papéis impossíveis de serem reciclados. Todo o resto vai para a compostagem ou reciclagem. Lauren foi também a inspiração para uma brasileira, a designer de Florianópolis (SC) Cristal Muniz. Autora do blog Um Ano sem Lixo, Cristal explica que começou com o projeto depois de ler, durante um domingo inteiro, o blog da Lauren. “Fui ficando superencantada, porque parecia ser muito fácil e óbvio em alguns aspectos. Foi no momento certo que encontreio blog, porque eu já estava incomodada e não sabia o que fazer, nem de que forma poderia reduzir minha produção de lixo”, conta Cristal.

Pequenas rotinas

A designer também explica que a rotina não teve muitas transformações: as mudanças ocorreram principalmente com os objetos utilizados no cotidiano. “O que mudou foi que eu passei a ficar muito mais atenta a tudo. Se vou sair de casa, sempre confiro se tenho um guardanapo, meu copo e meus talheres na bolsa. Quando eu sei que há possibilidade de comprar algo na rua, levo uma sacola”, explica a designer, que também passou a fazer compostagem, reduziu a quantidade de compras de alimentos, usa bucha vegetal para lavar a louça e passou a produzir seus cosméticos e produtos de limpeza. Para mim, a organização é o mais difícil: ainda estou na fase de esquecer de levar guardanapo de pano para os lugares ou de carregar a ecobag para o mercado do bairro quando preciso comprar alguma coisa. Mas isso também pode ser um hábito cultivado. Fazer os próprios produtos também tem sido um desafio, em especial por falta de tempo (e, claro, de organização).

sustentável Unsplash

Apesar de o “ano sem lixo” ter sido 2015, Cristal não tem intenção de voltar a produzir lixo como antes. Hoje dá workshops e palestras e criou um grupo no Facebook com o mesmo nome de seu blog para discutir questões sobre hábitos mais verdes. E também modos para tornar mais fáceis as pequenas ações sustentáveis do dia a dia. Faço parte do grupo, e perguntei aos mais de 200 participantes quais eram as principais práticas que realizavam diariamente. Boa parte das mulheres que responderam minha pergunta disse que está usando, por exemplo, coletor menstrual e absorvente de pano, para reduzir o consumo do acessório descartável. Outra ação comum entre os participantes é a substituição das sacolas plásticas por caixas de papelão e sacolas de pano. E, ainda, a utilização de garrafas de aço inox ou canecas e copos retráteis, para diminuir o uso de garrafas e copos descartáveis. “Tenho minhocário, planto ervas em casa e troquei a areia dos gatinhos por uma de madeira biodegradável”, afirmou a administradora e designer Helen Pinho, integrante do grupo.

Só o necessário

Duas características em comum entre essas pessoas são o aumento da busca pela origem do produto que consomem (se a produção é local, se tem origem animal ou mão de obra em condição análoga à escravidão) e uma maior atenção com os detalhes – se os produtos são biodegradáveis, com embalagens recicláveis, se contêm componentes que possam prejudicar o ambiente (como as micropartículas plásticas nos esfoliantes, por exemplo), entre outras exigências. Quem acredita que ainda não consegue incorporar práticas mais drásticas, como a produção reduzida de lixo e compras com seus próprios vasilhames, começa pela reciclagem: “Levo todo lixo seco para a reciclagem, pois meu bairro não tem coleta seletiva. Além disso, só compro algo novo se realmente for necessário”, comenta a auxiliar administrativa Fernanda Rebello, outra participante do grupo.

Como Fernanda, tem muita gente colocando o pé no freio no ato de comprar. Já existe um movimento para isso, o chamado lowsumerism, que se baseia na redução do consumo a partir de ações como compartilhar, fazer seus próprios produtos, consertar, trocar e reaproveitar. O termo vem das palavras low (baixo) e consumerism (consumismo), e é um estímulo à reeducação no cotidiano, a fim de diminuir o impacto de nossas ações no planeta. Essa busca tem influenciado até a moda, com o slow fashion (que é a redução no consumo das roupas), o debate constante sobre os modos como as peças são feitas e o combate ao uso da mão de obra análoga à escravidão. O slow fashion é uma antítese do fast fashion: um modelo de fabricação veloz, de roupas com material de baixa qualidade e baixo preço, o que só é possível quando as pessoas que produzem as peças são mal remuneradas.

sustentável Priscilla du Preez (Unsplash)

Outro movimento que está cada vez mais comum, inclusive por aqui, é a economia compartilhada. São diversas as mudanças: utilizamos mais o streaming de músicas e filmes em vez de comprar mais CDs e DVDs, alugamos casas de pessoas quando viajamos e pegamos caronas solidárias. Compramos em brechós e trocamos livros e outros produtos, além de compartilhar o conhecimento e serviços. Muitas dessas ações contam com seus próprios aplicativos para facilitar o processo, e basta dar uma olhada na internet para ver as iniciativas que têm como premissa esse tipo de partilha.

Cidades mais possíveis

As ações ditas sustentáveis podem, também, ultrapassar os muros do nosso quintal e permear a relação com a cidade e, dessa forma, influenciar a qualidade de vida. Basta observar quais as principais características dos lugares que admiramos: muitos deles têm ruas limpas e arborizadas. Alguns até diminuíram o uso do carro e passaram a focar no trânsito de pessoas. E a predominância de árvores e de canteiros é uma característica essencial de cidades que se preocupam com o bem viver de seus cidadãos. Mas essas iniciativas não precisam partir apenas do poder público, de algo que vem de cima para baixo.

Algo que está em voga é o pensamento de que podemos construir a cidade que queremos. Em Salvador, por exemplo, a jornalista Débora Didonê criou o movimento Canteiros Coletivos, que busca inspirar grupos de pessoas de diversos bairros a fazer intervenções urbanas de jardinagem e arte no espaço público. São praças, canteiros e áreas abandonadas que recebem ações criativas e artísticas e também o plantio de mudas de várias espécies. O movimento nasceu em 2012, a partir de um grupo de discussões sobre o futuro de Salvador e a ocupação das ruas da cidade. “Comecei a refletir sobre isso. Eu já tinha vontade de ocupar espaços ociosos e mal cuidados da cidade, de fazer intervenções de jardinagem. As coisas foram se juntando, e consegui encontrar um grupo que tinha essa força e vontade de estar na rua”, explica.

Cuidando da cidade

O grupo é constituído de voluntários e já realizou parcerias com diversas instituições para as ações nos espaços públicos. Também promove oficinas e já possui um berçário de mudas, que recebe doações a serem reproduzidas e plantadas nos lugares por onde o movimento passa. “A gente vem procurando tornar o Canteiros Coletivos um movimento autossustentável, sem a formalização burocrática de se transformar numa instituição”, completa Débora.

O Canteiros, como tantos outros projetos, tem dificuldade  de  arrecadar  recursos, mas sua extensão já ultrapassou os grupos que vão até os terrenos que serão revitalizados. Comunidades dos arredores acabam por seguir o exemplo e cuidam, eles mesmos, desses locais. Em Amaralina, um dos bairros onde o movimento já esteve, Débora conta que, durante um encontro, um morador da comunidade, Álvaro Assunção, aproximou-se e perguntou o que precisava fazer para manter o canteiro. Ele, então, mobilizou as pessoas do bairro e montou sua própria equipe, que até hoje cuida do espaço. Antes de tudo isso acontecer, o local era alvo de entulhos.

sustentável Justyn Koh (Unsplash)

Para a idealizadora do Canteiros, nós nos desconectamos da relação com o lugar onde vivemos: “Em geral, achamos que tudo o que está relacionado ao espaço público precisa de um funcionário ou do governo local para cuidar. A gente não se enxerga participando do processo de construção da cidade”. Concordo. O nosso hábito é de não nos responsabilizarmos pela calçada na frente do prédio, nem pela água que vaza na rua, nem pelo jardim destruído na praça da frente e que deu lugar a um depósito de lixo dos moradores dos arredores. Aprendemos a pensar na sustentabilidade como algo que vale apenas da porta de casa para dentro.

Cuidar da cidade, fabricar os próprios produtos de limpeza, se dedicar à compostagem, reciclar… Tudo isso parece, às vezes, tarefa demais, principalmente quando já se tem muitas responsabilidades diárias. Mas, pelo menos para mim, a vida precisa ser um pouco mais do que eu faço ou como vivo dentro do meu apartamento ou no escritório. Sigo tentando aprender mais e não esquecer de colocar minha ecobag e o guardanapo de pano dentro da bolsa. Pelo menos tenho uma primeira vitória: o rapaz que pesa a carne no açougue do supermercado já parou de me perguntar o que ele precisa fazer e de chamar o gerente para explicar que vou colocar as carnes nas vasilhas, em vez de usar pratos de isopor. Hoje ele simplesmente diz: “Ah, eu lembro de você, é a moça dos potes”.


Aline Cruz é jornalista e ilustradora, adora trabalhar perto de suas mudas de manjericão e este é seu primeiro texto em vida simples. 

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