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O que aprendi ao nadar
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O reencontro consigo mesmo e com a força para seguir em frente diante de dores emocionais e de dificuldades profissionais pode surgir na rotina, numa despretensiosa aula de natação

Na beira da piscina, é preciso coragem para entrar na água fria. É difícil vencer a própria resistência e cumprir o ritual de colocar a roupa de banho, a touca, os óculos e os protetores de ouvidos. Mas o sol, quase sempre presente na capital carioca, ajuda nessas horas e aquece o corpo. Respiro fundo e mergulho. No início, entrar é um incômodo gelado, mas logo me acostumo. Nado todos os dias há exatos seis meses e quase já não sinto a água. É como se eu mergulhasse em um mar de gelatina. De tão habituada, parece que não estou sequer molhada, apenas acolhida pela piscina que, faça chuva ou sol, está sempre ali, grandiosa, para me abraçar sem reservas.

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Começo nadando (estilo) peito e vou pegando o ritmo aos poucos, abrindo caminho com meus braços e pernas,  tentando fazer uma faxina na superfície onde irei, em breve, mergulhar de verdade. Lentamente, fico imersa naquele ambiente líquido. Pertenço àquela água e o pensamento flui com meu corpo. A respiração abre os pulmões. Penso nos pulmões do meu pai, que não funcionaram no seu fim, há alguns meses. Estavam cheios de água, que precisou ser retirada com a ajuda de um dreno e pingava em um recipiente ao lado da cama no hospital sem que ele se desse conta disso. Seus pulmões estavam infeccionados e agora eu preciso do exercício para que os meus pulmões fiquem limpos e fortes por nós. A água passa por mim enquanto afundo e levanto novamente a cabeça de forma ritmada. Tudo boia comigo, molhado pela água fria e espalhado na piscina azul.

Na piscina, uso minha força

De (nado) crawl, dou braçadas fortes que parecem ter a capacidade de tirar de dentro de mim a dor que insiste em me acompanhar nos últimos tempos. De início, as braçadas são pesadas e lentas. Três braçadas, viro o rosto para o lado, vejo o céu, o verde intenso e a linha da água. Três braçadas, viro o rosto para o lado e lembro de todas as minhas pendências. Mais três braçadas, respiro de lado e lembro que estou recentemente desempregada. Três braçadas, e as notícias de jornal me invadem: minha cidade é suja, injusta e violenta. Três braçadas e lembro que meu pai se foi, e da permanente ausência dele em minha vida.

Nunca pratiquei uma luta, mas aqui na piscina uso toda a minha força para rodar os braços e mover todo o meu corpo na água. Bato as pernas com mais intensidade e ganho com isso velocidade. A respiração sempre me acompanha. Não sei fazer a tal da virada olímpica, e invejo quem sabe, pois não precisa interromper o nado para seguir adiante. Mas, no crawl, já estou completamente integrada à piscina. As braçadas se tornam leves e girar a cabeça para respirar já é um gesto completamente automático.

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Nesse momento, meu foco está no fundo da piscina e em me mover pra frente, sempre pra frente. Aliás, quanto mais profunda a piscina, melhor me sinto. O sol abre e os azulejos brilham logo abaixo de mim. Chego a ver meu reflexo. Penso que nadar na piscina é bom, mas nadar no mar é incomparável. Quando o tempo está fechado, nado com ainda mais força e penso estar na água salgada, vencendo, por mim mesma, ondas e ventos. Uma, duas, três braçadas e nada disso importa. Apenas deslizo nela.

Quem vai levar a Ana?

Nadar de costas traz paz e um prazer imenso. Às vezes tiro os óculos de natação para ver melhor o céu e sentir o sol aquecer a parte do rosto que fica para fora d’água. Deito a cabeça na prancha e os sons são abafados pelos meus tampões de ouvidos. Olho as nuvens e as gaivotas, que, de tão longe, lá no céu, parecem muito pequenas. As nuvens formam desenhos e consigo reconhecer uma enorme figura do meu pai me olhando, lá de cima a me observar e cuidar. Quando estava internado no centro de terapia intensiva (CTI) do hospital, ele um dia perguntou: “Quem vai levar a Ana para nadar?”. Ele se referiu a mim como se eu fosse ainda uma criança.

Não tenho religião, nem ele tinha, mas é impossível não acreditar na presença de Deus quando estou nadando. É algo que surge entre uma braçada e outra, entre uma inspiração e uma expiração, quando já não sinto o meu corpo, apenas a piscina. Eu sou a água, meu pai é o céu e é certo que aquele passarinho que pousou na borda e olha para mim está me dizendo alguma coisa. Faço força para conseguir ouvi-lo, como se eu fosse de fato uma criança. Neste momento, em que não tenho um trabalho em escritório, com hora para entrar e sair, minha rotina é marcada pela natação. Estou livre e é preciso rigor e persistência para nadar, mas também é necessário saber se deixar levar pela água.

O nado em família

Sinto saudades, cantarolo uma série de músicas embaixo d’água, fico cansada e penso que nunca mais vou nadar. Já até mesmo chorei ali submersa, com os óculos encharcados pelas lágrimas invisíveis para quem está olhando de fora da água. Amo a natação e jamais poderia viver sem ela. Foi meu pai, aliás, quem me ensinou a nadar, e fui eu que ensinei minha mãe a nadar. Na água sempre me sinto em casa.

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Levanto o rosto na borda e vejo um grupo de crianças fazendo aula, próximas de onde estou. Elas estão batendo suas pequenas pernas com muita vontade, fazem força segurando suas pranchinhas para chegarem ao outro lado, ganhando uma distância que parece infinita para alguém do tamanho delas. De repente, o cheiro de cloro me invade e até isso é muito bom.

Penso nas minhas duas filhas e em como amo nadar com elas. Alice, mais velha, já nada debaixo da água com bastante destreza e desenvoltura. Ela gosta de me dar tchauzinho quando está lá embaixo, olhando para mim com seus óculos de natação cor-de-rosa e com a vitalidade de quem acabou de aprender a ler, escrever, nadar, andar de bicicleta e ser livre. Afundamos e fazemos jogos no fundo da piscina. Em um deles, é preciso, embaixo d’água, ouvir e repetir o que a outra diz. Em outro, brincamos de somar e adivinhar os números que mostramos uma para a outra com nossos dedos, submersas. Olivia, a caçula, ainda não nada com segurança. Ela entra na água com suas boias nos braços e então sobe nas minhas costas enquanto estou nadando.

A medalha de ouro

Ela gosta de ficar pendurada em mim e, do fundo da piscina, ouço suas risadas abafadas, seu prazer em brincar na água e em ter vencido o medo de entrar – que uma vez já teve e que nunca mais terá. “A mamãe virou um peixe e eu também!”, ela fala enquanto ri alto, tudo ao mesmo tempo. Eu me sinto completamente ligada às minhas meninas e tenho a certeza de que na água sempre estaremos juntas.

A precisão e a beleza de cada movimento dentro daquele espaço, a velocidade com que venço cada volta, os pequenos recordes de mim para mim mesma que bato ali dentro da piscina. Minhas vitórias, minhas derrotas e minha energia renovada. Quanto mais se gasta, mais se ganha. Repito esse mantra e renovo a fé de que posso sempre me encontra fazendo aqueles movimentos cadenciados, olhando aquele céu azul e ouvindo o que o passarinho pousado na borda me diz.

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A mensagem não é traduzível, mas ela chega até mim e fala sobre sorte na vida, sobre o amor, que quanto mais se gasta, mais se ganha e sobre tudo o que insiste em surgir dentro e fora d’água. Meu pensamento transborda e escoa pela água. Não há realmente com o que se preocupar. A história é fluida e é possível reencontrar aquilo que se ama, sempre. Meus pulmões estão abertos e abençoados. Termino a série de 30 minutos e minha medalha de ouro quem me dá sou eu mesma.

Ana Signorini escreve, traduz e trabalha com comunicação. É mãe de duas meninas e segue nadando.

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