Acolha a sua imperfeição
É reconfortante compreender que nem tudo precisa sair da forma como idealizamos. Errar faz parte do caminho, e aceitar a nossa vulnerabilidade traz coragem para viver, de fato, o que sonhamos
É reconfortante compreender que nem tudo precisa sair da forma como idealizamos. Errar faz parte do caminho, e aceitar a nossa vulnerabilidade traz coragem para viver, de fato, o que sonhamos
Para que a argila pudesse se transformar em uma xícara de porcelana, cheia de ondulações e delicadeza, a artista plástica Laura Loscalzo precisou ficar atenta a um elemento que nada tem a ver com a matéria-prima, o torno de modelagem ou o forno de queima das peças: ela teve que olhar para o seu perfeccionismo – e como ele a impedia de criar.
Embrulhado como uma bonita chave que nos promete a excelência e o bom resultado, o que ele faz é nos trancar para o lado de fora do campo das oportunidades e da alegria em materializar nossos talentos no mundo.
“Hoje eu tenho certeza de que o perfeccionismo não só nos limita como também nos domina. Porque dá medo imaginar que não vai ser possível chegar ao resultado maravilhoso que você idealiza. E, em vez de dizer ‘ok, vamos tentar e ver no que vai dar’, você nem começa”, conta.
Por muitos anos, antes de criar a Iaiá, seu estúdio de cerâmica e porcelana artesanal, Laura deixou de lado o trabalho com as artes de que ela gostava ainda criança. Formou-se em cinema, trabalhou em agências e escritórios. E, quando a vontade de se dedicar ao fazer manual fez barulho, foi logo silenciada pela voz do perfeccionismo, que insistia em questionar “mas e se não ficar bom o bastante? E se você errar? E se as pessoas não gostarem?”.
Na verdade, perfeccionismo não é se dedicar com empenho para fazer o melhor trabalho. Não tem a ver com aperfeiçoamento nem é o segredo do resultado perfeito. “Por definição, trata-se de um medo excessivo de cometer erros. De ter qualquer ação que possa estar aquém do esperado segundo algum critério.
O que o perfeccionista faz, no fundo, é evitar de muitas maneiras a chance de falhar, de receber uma crítica de si ou dos outros”, observa a psicóloga e mestre Yara Nico, que tem se dedicado a estudar o tema e dá aulas sobre o assunto em São Paulo.
Nos Estados Unidos, a pesquisadora e professora da Universidade de Houston Brené Brown também traz considerações importantes sobre o tema em seu livro A Coragem de Ser Imperfeito (Ed. Sextante). Ela diz que o perfeccionismo é um sistema de crença autodestrutivo, pois o medo de falhar, de não corresponder às expectativas dos outros e de ser criticado mantém o perfeccionista fora da arena da vida.
“A maior parte dos perfeccionistas cresce sendo louvada por suas conquistas e seu bom desempenho (notas, boas maneiras, regras cumpridas, trato com as pessoas, aparência, esportes). Em algum ponto do caminho eles adotaram esse sistema de crença perigoso e debilitante. ‘Eu sou o que eu realizo e quão bem o realizo’”, ela diz. “O empenho saudável é focado em si mesmo: ‘Como posso melhorar?’. Mas o perfeccionismo é focado nos outros: ‘O que eles vão pensar?’.”
É comum que o perfeccionista seja um
eterno insatisfeito. Faz e refaz um trabalho
e ainda acha que não ficou bom o bastante.
Colocar-se em ação com amor, sabendo
que está dando o seu melhor, pode ajudá-lo
a se contentar com o resultado final
A vida perfeita
Para evitar a dor da vergonha do erro, cada um cria diferentes estratégias, mesmo que de forma inconsciente. O medo de nos frustrarmos por algo que talvez não fique à altura do que queremos pode nos fazer adiar constantemente uma tarefa, ou até mesmo uma realização maior, como aconteceu com a Laura, e como pode acontecer comigo ou com você.
“Procrastinar é comum quando a atividade é mesmo desagradável, mas, para o perfeccionista, essa ação faz parte de adiar o possível contato com a dor da expectativa não alcançada”, diz Yara. “Afinal, se eu não fizer, ao menos não vou correr o risco de me desapontar.” Assim, muitas vezes aguardamos o momento perfeito, o conhecimento ideal sobre um assunto, o equipamento mais adequado. E ficamos estagnados, à espera de algo que nunca chega – nem vai chegar.
Outro comporta-mento é a repetição e checagem de tarefas. Insatisfeito com o resultado, a ação é refeita diversas vezes. Pessoas muito exigentes também podem se tornar centralizadoras, assumindo o controle de todas as tarefas, pois assim aplacam o medo que sentem de que os outros cometam erros e o trabalho não saia como o idealizado. Quem também é demasiado indeciso pode descobrir que por trás dessa incerteza está o temor em não fazer a escolha mais acertada, perfeita. Novamente, é o medo de errar em ação.
Perfeccionismo oculto
Tradicionalmente relacionado ao desempenho profissional, o perfeccionismo também pode aparecer em áreas que a gente nem relaciona. É a preocupação excessiva com a aparência, que deve ser impecável, ou a limpeza da casa, que precisa estar sempre brilhando. O aprendizado de uma nova atividade, como tocar um instrumento ou aprender uma dança, deixa de ser prazeroso diante da cobrança pelo desempenho excepcional.
É a dificuldade em tolerar o erro dos filhos, ou a exigência de que o parceiro tenha atitudes de determinado jeito o tempo todo – e, assim, até a convivência com aqueles que amamos pode se tornar motivo de conflito e sofrimento. “Cada uma dessas formas de se relacionar com o medo da falha pode aparecer em qualquer situação e tem um custo emocional muito alto. Seja numa ponta a paralisia, deixando de realizar coisas importantes para a própria pessoa ou, na outra, o estresse por refazer incontáveis vezes. Será que o processo pre- cisava mesmo ser tão doloroso?”, observa Yara.
Quem está na vida com o padrão do perfeccionismo instalado pode acabar operando nos extremos: “Ou fica como eu quero, ou não serve”. “O estado natural do perfeccionista é a insatisfação. Que no fundo é dele com ele mesmo. O foco é no que está faltando, ou no que está errado. É uma falha do ego, baseada no sentimento de insegurança, rejeição, inferioridade”, observa Elenir Melo, terapeuta reconectiva que trabalha para unir o ego do paciente à sua essência divina através de leituras do inconsciente.
Por que falhar é tão terrível
O primeiro aspecto que precisamos considerar com ouvidos mais disponíveis é que a perfeição não existe. Escutar isso parece aterrorizante, e a visão fica até meio turva, eu sei. Como uma boa perfeccionista, por muito tempo eu ignorava essa afirmação respondendo mentalmente com um “Ah, uhum, ok… Mas eu quero que fique perfeito”. Perfeccionistas são tão obcecados e obstinados que vão continuar achando que a perfeição existe, mesmo que nem nós mesmos saibamos exatamente como ela é.
Quem se coloca em padrões irrealistas e
inflexíveis pode se ver adiando constantemente
ações que trariam prazer e realização.
O medo de errar, falhar ou ser criticado
evita que nos coloquemos em movimento.
Mas é preciso arriscar e dar o primeiro passo
Afinal, se soubéssemos, não seria tão difícil de alcançá-la. E também não continuaríamos repetindo que não ficou como queríamos. Bem por isso dá para entender que perfeição é, sobretudo, uma percepção particular de cada um. “Porque o perfeito é um conceito relativo. Não é absoluto, é arbitrário, é mutável. Mesmo que alguém julgue ter alcançado a perfeição, para outra pessoa aquilo pode não ser tão excelente assim”, diz Yara. Segundo ela, é valioso observarmos que não nascemos perfeccionistas. Não “somos” desse jeito ou de outro; estamos. Portanto, é algo possível de ser transformado.
O medo de errar e falhar é algo que foi sendo construído ao longo da história emocional de cada um. Um bebê não desistiu de mamar porque tinha medo de fazer aquilo errado. Ou parou de andar depois de ter caído na primeira tentativa. “O erro e o fracasso fazem parte do processo de aprender e não são, por si só, impeditivos para uma criança continuar a explorar o mundo curiosamente.
Não chegamos aqui enxergando a falha como algo a ser evitado. Então a pergunta é: quando que, em nossa história pessoal, errar começou a ser tão ruim?”, instiga Yara. Para entender por que o sentimento de rejeição e fracasso pode ser tão ameaçador, antes precisamos olhar para nós como dependentes uns dos outros, em que a aprovação do grupo e a sensação de pertencimento são necessidades essenciais.
A questão é que pessoas com padrões perfeccionistas aprenderam em algum momento que falhar é ameaçador a essa sobrevivência. E que só são dignos de amor e acolhimento aqueles que forem perfeitos. A fotógrafa californiana Andrea Scher tem trabalhado para acolher sua própria imperfeição e hoje inspira pessoas a viver de forma mais autêntica através de seu blog, SuperHero Journal.
“Quando criança eu associava ser perfeita com ser amada, e acho que ainda confundo as duas coisas. Eu me vejo muitas vezes fazendo quase um contorcionismo para que as pessoas não vejam como eu sou incrivelmente falha e humana. Às vezes tenho meu valor condicionado ao que faço e a como pareço boa fazendo essas coisas…”, conta Andrea.
Se falhar passa a ser igual a não ser digno de amor, relacionamos o nosso desempenho diretamente ao nosso valor pessoal. Assim, é visto com perder o nosso valor como um todo, o que não é verdade.
Você é bom o bastante
Para sermos capazes de viver com mais liberdade e leveza, acolhendo a nossa imperfeição, precisamos deixar de lado o “o que as pessoas vão pensar” e começar a crer que já somos bons o bastante, reduzindo as cobranças sobre nós – e sobre os outros – e nos esforçando para enxergar beleza em quem somos e no que fazemos.
E reconhecer que, independentemente do que realizamos, o nosso valor se mantém ali, protegido. Resiliência à vergonha, aceitação e amor-próprio, segundo Brené Brown, andam juntos para construir um modo de viver mais imperfeito e autêntico.
Outro passo é cultivar a autocompaixão, conversando conosco com a mesma afetividade que dedicamos a quem amamos. Segundo as pesquisas da americana, as pessoas que mais se expõem e, portanto, erram mais, são também as mais criticadas. Mas mesmo assim elas se sentem mais realizadas e verdadeiras.
Além disso, aquelas que sabem de suas imperfeições e vulnerabilidades curiosamente também são as que têm mais coragem e se sentem merecedoras de amor e aceitação – justamente o contrário do que se passa com o perfeccionista.
Para a terapeuta Elenir Melo, o caminho também está na autoaceitação. “Faço com amor, sabendo que sou digna, e, se não ficou tão bom, não me machuco. Sei que dei o meu melhor. E aos poucos a crítica passa a ter um peso menor sobre mim”, ela diz. Segundo a terapeuta, esse processo também nos ajuda a ser mais tolerantes com aqueles com quem convivemos, entendendo que o outro está sendo o melhor que ele pode dentro daquele momento. Com isso, é possível que a convivência também se torne mais leve, porque “a crítica e o julgamento constante do outro são só uma manifestação da falta de tolerância que há dentro de nós mesmos”. ela diz.
Muitas vezes o perfeccionista acaba
acumulando mais trabalho e funções porque,
lá no fundo, acha que os outros não farão
tão bem quanto ele. Para equilibrar esse pensamento,
precisamos aceitar que o “melhor do outro”
pode apenas ser diferente
Outra estratégia que podemos trazer para o dia a dia a fim de sair desse modelo inatingível é nos propor pequenos desafios em que erramos de propósito. Esse é um dos exercícios sugeridos no livro When Perfect Isn’t Good Enough: Strategies for Coping with Perfectionism (Quando o Perfeito Não É Bom o Bastante: Estratégias para Lidar com o Perfeccionismo, em tradução livre), dos escritores Martin M. Anthony e Richard P. Swinson.
“Perfeccionistas se colocam padrões irrealistas e inflexíveis, impossíveis de cumprir para a maioria de nós. Eu sugiro que eles testem pequenos experimentos em que propositalmente não fazem algo perfeito. O que será que pode acontecer?”, provoca Martin.
Vale sair com o cabelo um pouco bagunçado se a aparência é muito importante, servir uma sobremesa não tão impecável quando a exigência está nas panelas. Ou mesmo tolerar que algo na organização da casa fique fora do lugar.
“Se você praticar fazer coisas imperfeitas, poderá se sentir mais confortável com a imperfeição, além de perceber que aquilo não foi o fim do mundo, que nada de tão trágico aconteceu”, diz Martin. Pensar na pior coisa que poderia acontecer caso algo a que me propus venha a dar errado é uma alternativa a que eu costumo recorrer.
Analisando de forma racional, percebo que, de fato, mesmo nas piores consequências possíveis eu ainda estou a salvo – por exemplo, ainda que este texto não agrade a todos os leitores, nada de muito ruim deve passar na minha vida depois disso, e eu serei capaz de seguir em frente.
Em suas aulas sobre como lidar com o perfeccionismo, Yara Nico também propõe algumas questões para que os alunos reflitam sobre esse jeito de estar na vida. Entre elas, está se questionar se nossas exigências estão em um nível realmente alcançável, e quais seriam os custos e os benefícios se baixássemos um pouco o patamar de nossas cobranças.
“Reduzir o nível de perfeccionismo envolve coragem, mas é libertador. Muitas vezes por trás da busca pela perfeição está a vontade de aprovação social, ainda que isso signifique viver um script que não é seu. Ousar ser menos perfeito significa desenvolver a coragem de ser autêntico e viver a vida que eu acho que vale a pena”, diz Yara.
O desejo por fazer tudo perfeito também esmaga a nossa criatividade. Laura, em seu ateliê de cerâmica, constantemente enfrenta o medo do resultado final, mas se propõe a se colocar em movimento mesmo assim.
“Eu sinto que eu poderia ter feito diferente, tido um projeto melhor. É uma eterna punição. Mas também fico feliz, porque ao menos concretizei uma ideia. O curioso é que às vezes faço uma peça, não gosto e a deixo de lado. Aí alguém chega e é justamente aquela cerâmica que a pessoa mais gosta. Ao mesmo tempo em que as peças não são perfeitas, não foram feitas de forma industrializada e impecável, elas também têm uma perfeição, porque eu as produzi com tanta delicadeza e cuidado… Aprendi que o trabalho é uma expressão de mim também”, conta.
“A gente acha que errar é o pior fracasso, mas não. Você está só vivendo, e viver não é acertar o tempo todo.” Talvez o melhor caminho para a tal perfeição na vida seja mesmo se colocar no mundo de forma imperfeita e vulnerável. Porque, quando não nos satisfazemos mesmo depois de tanto empenho ou esperamos a vida toda para nos tornarmos prontos e “bons o bastante” para enfim começar a brincar, corremos o risco de perder oportunidades incríveis e relacionamentos leves, além de não honrar os talentos que só nós trazemos. Lembro de uma conversa com o escritor Valter Hugo Mãe, sobre seu apaziguamento em relação à sua maneira de escrever: “A gente precisa aceitar a ser o que a gente é. Ser o que se pode ser é a felicidade”.
DÉBORA ZANELATO já foi muito perfeccionista e escrever esta matéria, imperfeita, a ajudou a se tornar mais corajosa e autêntica
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