Carga mental: o trabalho invisível que pesa no emocional
Acúmulo de tarefas e cobranças diárias pode sobrecarregar a mente e o emocional. Entenda como reconhecer os sinais de alerta e adotar estratégias para se proteger

Você já se pegou tomando banho enquanto mentalmente planejava quem vai buscar as crianças, como organizar as contas da semana ou quais tarefas da casa e do trabalho ainda precisam ser feitas? Essa sensação de estar sempre “ligado” não é à toa. Trata-se da carga mental, um conceito que impacta diretamente no bem-estar emocional e físico de milhões de pessoas, especialmente das mulheres.
Em uma sociedade que ainda insiste em romantizar a multitarefa e invisibilizar o trabalho mental, reconhecer o peso da carga mental é uma forma de resgatar o próprio valor e de transformar, pouco a pouco, as relações de cuidado e trabalho.
Por que ainda carregamos tanto sem perceber?
Esse fenômeno surgiu inicialmente nos estudos da saúde do trabalhador, focados na ergonomia e nas exigências físicas. Mas, como explica Marcelo Arinos Drummond Jr, professor de psicologia do Centro Universitário Uniarnaldo, de Belo Horizonte, “além da carga física, existe a carga psíquica, a carga mental. Essa carga é fruto da interação entre o trabalhador e as demandas de sua atividade tanto físicas como cognitivas e emocionais”.
Com o passar dos anos, o conceito de carga mental foi ampliado para além do trabalho remunerado, alcançando também a organização das tarefas domésticas. Em muitos lares, especialmente em relações heteronormativas, a gestão da casa que exige planejamento, previsão de necessidades, solução de problemas e coordenação de tarefas, ainda recai, majoritariamente, sobre as mulheres.
É como se elas exercessem uma função de gestora: antecipam demandas e organizam rotinas. Além dessa função estratégica, também acumulam a execução prática das tarefas, como cozinhar, limpar, cuidar de filhos e gerenciar compras e serviços, o que representa uma sobrecarga dupla de trabalho. “É um trabalho complexo, exigente e exaustivo que acontece na cabeça de quem cuida de tudo”.
Fatores que agravam a carga mental
Segundo o docente, um dos motivos da invisibilidade da carga mental é que, na sociedade, o que se enxerga como “trabalho doméstico” é apenas a execução. “Todo mundo vê alguém lavando roupa ou limpando a casa. A gestão, o planejamento do que precisa ser feito, não é percebido porque acontece dentro da cabeça de quem executa”, pontua.
O acúmulo da carga mental não acontece por acaso. Dois fatores principais são destacados pelo psicólogo: a falta de valorização social e a ausência de identificação pessoal com o trabalho.
“Quando o trabalho que realizamos não é valorizado pela sociedade e nem faz sentido para nós, o sofrimento mental aumenta consideravelmente”, afirma. Além disso, a sensação de que o trabalho doméstico ‘nunca termina’ agrava ainda mais a frustração. “É um trabalho cíclico. Nunca está completo. Sempre há algo a ser feito, diferente de outras atividades em que é possível ver o início, meio e fim”.
Outro fator importante é o gosto pessoal. “Se você gosta das tarefas que realiza, a carga mental tende a ser menor. Mas se a tarefa é obrigatória e sem prazer, o peso mental é muito maior.”
Embora a cultura da produtividade e da multitarefa esteja relacionada ao aumento do estresse, ela não é a origem da carga mental, segundo Marcelo. A raiz do problema está mais ligada à estrutura histórica da divisão de papéis sociais.
No entanto, ele aponta que vivemos hoje sob uma pressão extra: “A cultura do ‘eu dou conta de tudo’ foi introjetada. Antes, eram os gerentes que cobravam desempenho. Hoje, nós mesmos somos nossos chefes internos”.
Quando a mente adoece, o corpo sente
A carga mental, quando constante e não reconhecida, pode afetar seriamente o bem-estar emocional e físico. “A frustração por não ver sentido, por não ser reconhecido e pelo acúmulo incessante de tarefas leva ao estresse, à ansiedade e à depressão”.
No campo físico, os reflexos aparecem por meio das chamadas doenças psicossomáticas: “A queda da imunidade é um dos primeiros sinais. Estresse psicológico crônico abre espaço para doenças físicas”, alerta.
Além disso, a irritabilidade e a agressividade tendem a se manifestar, especialmente nas relações mais próximas. “Essa irritação não é apenas contra os outros. Muitas vezes, a agressividade se volta contra si mesmo, alimentando circuitos depressivos.”
Como diminuir a carga mental no dia a dia
Dizer que está sobrecarregado ainda é visto, muitas vezes, como sinal de fraqueza. Mas o docente propõe outra visão: reconhecer a carga mental é, na verdade, um ato de lucidez. “Atualmente, a culpa por não dar conta é quase universal. Mas é fundamental lembrar que essa é uma cobrança forjada historicamente, e não uma falha pessoal”, explica.
- Reconheça o problema socialmente: falar sobre o assunto e conscientizar as pessoas ao redor já é um primeiro passo importante para dividir responsabilidades de maneira mais justa;
- Divida a execução e a gestão: muitas vezes, o que sobrecarrega não é só fazer, mas pensar e planejar. “Se você tem um companheiro ou uma companheira, é importante conversar de forma honesta: não basta executar tarefas, é necessário também assumir parte da gestão.” Por exemplo, cuidar para que mantimentos não faltem, organizar a logística da casa e se antecipar às necessidades são tarefas que também precisam ser compartilhadas;
- Adapte as tarefas ao seu jeito: dentro do que é possível, vale encontrar formas de tornar o cotidiano menos pesado. Coloque um pouco da sua identidade nas tarefas, buscando tornar o que é obrigatório mais leve. “Se tenho que buscar meu filho na escola, posso aproveitar para fazer algo que eu goste junto com ele, como tomar um sorvete. É uma forma de reduzir o estresse e aumentar o prazer.”
- Reduza a autocobrança: questione a cultura da alta performance. “Precisamos sair dessa cultura do ‘eu posso tudo’, que nos cobra produtividade infinita e ignora nossos limites.”. Ao aceitar que não daremos conta de tudo, evitamos adoecer na tentativa de atender expectativas irreais.
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