Entenda o que é racismo, preconceito e discriminação
Entender o surgimento do racismo e como ele é mantido na sociedade é essencial para enxergar o papel individual na luta por equidade
Vivemos em uma sociedade racista, e isso é inegável. No Relatório sobre Justiça Racial na Aplicação da Lei, publicado pela Organização das Nações Unidas em 1º de outubro de 2024, concluiu que, no Brasil,
“o racismo sistêmico generalizado está profundamente enraizado nas políticas e práticas atuais, que perpetuam as disparidades raciais na educação, saúde, habitação, emprego e outras áreas.”
Mas, apesar de todos saberem da existência da desigualdade racial, ouvirem sobre na televisão e conviverem com ela no dia a dia, muitos não compreendem o verdadeiro significado da palavra “racismo”.
Ao não compreender o que é o racismo, podemos continuar tendo ideias equivocadas sobre o termo e ainda reforçar pensamentos racistas.
Para entender o que significa e como funciona o racismo, é preciso, antes, compreender o sentido de raça. E como essa divisão começou a ser aplicada na humanidade.
O surgimento das “raças”
A origem etimológica do termo “raça” remete à classificação de espécies animais e vegetais, sendo inicialmente utilizada nas áreas da zoologia e da botânica. Quem explica isso é Claudete de Sousa Nogueira, mestre em história, professora e supervisora do Núcleo Negro de Pesquisa e extensão da Universidade Estadual Paulista (Unesp).
“Posteriormente, esse termo começou a ser aplicado em relações entre humanos. A raça começou a descrever grupos com características físicas comuns e linhagens compartilhadas. Mais tarde, foi usada como classificação hierárquica, com as concepções de superioridade e inferioridade”, aponta a professora.
Para Aza Njeri, doutora em literatura africana e professora da PUC no Rio de Janeiro (RJ), uma marcação temporal importante que aponta o surgimento do racismo é a colonização.
“Quando os europeus vão fazer a sua colonização pelo mundo, o critério da raça já é um balizador de humanidade”, explica.
“Dessa forma, com o início da expansão marítima e o processo de dominação territorial, a raça se torna não apenas uma divisão, mas um instrumento e uma engenharia de dominação”, contextualiza a especialista.
Essa dominação permanece, de certa forma, até os dias de hoje. É o que chamamos de período de pós-colônia, ou seja, os efeitos da colonização continuam sendo observados por cientistas e pelas sociedades, mesmo séculos depois da época colonial.
Aza Njeri também é escritora, autora do livro A luz de Aisha (Foto: divulgação)
Teorias pseudo-científicas ajudaram a consolidar o racismo
Depois do surgimento do racismo e da hierarquização de grupos na colonização europeia, a ciência – dominada pelo modo de pensar europeu – tentou encontrar embasamento e lógica por trás da desigualdade racial.
No século 19, teorias pseudo-científicas – que hoje são completamente rechaçadas – influenciaram profundamente a percepção de raças. Quem nos conta como isso ocorreu é Daniel Medeiros, doutor em educação histórica e professor no colégio Positivo.
“Pessoas utilizaram movimentos como o darwinismo social e a eugenia, que defendiam uma melhoria genética dos seres humanos, para justificar a hierarquização das raças”, explica o professor.
Segundo Daniel, pesquisadores introduziram o conceito de “eugenia”, argumentando, sem base científica, que certas raças eram biologicamente superiores a outras. Essas e outras pseudociências tentaram convencer pessoas de todo o mundo de que existe uma superioridade europeia e branca sobre outros grupos, legitimando políticas de discriminação e segregação racial.
Atualmente, a ciência rejeita a noção de raças biológicas humanas, tratando o conceito como cientificamente ineficaz para explicar a diversidade humana.
Segundo Claudete, a ciência comprova hoje que as classificações raciais são uma construção social e ideológica que refletem e sustentam relações de poder e dominação dentro das sociedades.
Como o racismo funciona atualmente?
Apesar do fim das divisões cientificas de raças, os efeitos da colonização e da escravidão ainda permeiam nossa sociedade. Isso ocorre, conforme aponta o professor Daniel, porque o racismo é um fenômeno estrutural, institucionalizado. Ele permeia normas, políticas e práticas de uma sociedade, favorecendo o grupo racial em detrimento de outros.
“O racismo estrutural está profundamente embutido nas instituições e sistemas da sociedade por meio de políticas e práticas que perpetuam a desigualdade racial”, explica.
Isso se manifesta em várias áreas do cotidiano, como na educação, no mercado de trabalho, nas taxas desproporcionais de encarceramento de pessoas negras e minorias, entre outras.
“De acordo com o IBGE, atualmente a população negra representa 55% do povo brasileiro. Mesmo sendo maioria, pessoas negras estão nos índices da fome, do desemprego, da violência, dos assassinatos, da baixa escolaridade, entre outros”, exemplifica a professora Claudete.
Para a professora, ainda há uma naturalização das desigualdades e um silenciamento sobre as situações de racismo, fazendo com que o enfrentamento seja cada vez mais complexo.
Afinal, racismo reverso existe?
Dentro do debate da desigualdade racial, volta e meia surge o termo “racismo reverso”, que defende uma ideia de que existiria um racismo contra pessoas brancas e grupos historicamente dominantes. Porém, essa ideia é ilusória e, portanto, racismo reverso é algo que não existe na vida real.
Se entendermos que o racismo é uma estrutura de poder, e que está fundamentado na opressão sistemática, estrutural e institucionalizada de grupos raciais por outro que detém poder político, econômico e social, é possível compreender que o conceito de “racismo reverso” não está conectado com a realidade. E por isso, não pode ser justificado. Quem aponta isso é Douglas Belchior, professor de história e cofundador da Uneafro Brasil.
“A falta de poder estrutural impede que grupos historicamente oprimidos cometam ‘racismo reverso’, uma vez que lhes falta a capacidade de impor um sistema de opressão contra grupos privilegiados”, aponta o ativista que luta há mais de 25 anos por direitos humanos.
Segundo ele, indivíduos de quaisquer grupos podem ter preconceitos ou discriminar com base em raça, mas o racismo como instituição de opressão é intrinsecamente ligado ao poder e à desigualdade estrutural. No Brasil, esse poder é concedido apenas à população considerada branca.
O professor Douglas Belchior, que estuda o racismo, em viagem a convite da North Carolina Central University, uma tradicional e histórica Universidade negra dos Estados Unidos (Foto: Instagram/arquivo pessoal)
Além disso, a professora Claudete complementa que a própria concepção de racismo reverso é problemática. “Ela sugere erroneamente a existência de uma forma ‘legítima’ de racismo e outra ‘anormal’ ou ‘reversa’, revelando, desse modo, a natureza estrutural do racismo na sociedade“, aponta.
Racismo, preconceito e discriminação: afinal, qual a diferença?
Visto que o racismo é um sistema de poder baseado na crença da superioridade de uma raça em relação a outras, é possível diferenciar esse termo de outros altamente ligados e confundidos entre si. São os termos “preconceito” e “discriminação”.
“Enquanto o preconceito e a discriminação são componentes do racismo, mas também existem fora dele, o racismo é mais abrangente, envolvendo estruturas sociais que perpetuam, além do âmbito individual, a desigualdade e a injustiça com base na noção de superioridade racial”, explica o professor Douglas Belchior.
Então vamos para as definições de cada um dos termos:
Preconceito: são estereótipos, crenças e generalizações sobre determinados grupos.
Discriminação: tratar alguém de forma injusta ou desigual, com base em características como raça, gênero, religião, deficiências, entre outros.
Racismo: fenômeno social, que afeta tanto estruturas institucionais quanto atitudes individuais, baseado no preconceito contra pessoas a partir do seu tom de pele e traços físicos que remetem a uma raça que é marginalizada, ou seja, vista como inferior e desvalorizada.
Isso significa que, embora possam existir preconceitos e atitudes discriminatórias por parte de indivíduos e de grupos historicamente oprimidos, esses grupos não têm a capacidade de instituir e nem manter um sistema de opressão racial de forma generalizada e estrutural.
Racismo estrutural não exime a responsabilidade individual
Ter o reconhecimento que o racismo faz parte da estrutura da nossa sociedade não exime a responsabilidade individual. Afinal, sabemos que pequenas ações influenciam cenários em contextos sociais mais amplos. Portanto, o racismo manifestado por atitudes e comportamentos cometidos por indivíduos é tão grave quanto o estrutural e o institucional.
A justiça brasileira considera crime e, portanto, condena, todas as formas de racismo. Pois elas afetam a dignidade e os direitos humanos. E a mudança estrutural requer ações tanto no nível institucional, quanto no individual.
“Combater o racismo envolve desafiar e desmantelar essas estruturas enquanto se adota comportamentos antirracistas na vida cotidiana. A responsabilidade pessoal é necessária e fundamental para criar uma sociedade melhor”, finaliza Daniel.
A luta contra o racismo é, portanto, um dever de todos. Como já dizia a pesquisadora e filosofa Ângela Davis, “em uma sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”.
Essa luta demanda maturidade emocional, muito estudo e coragem, seja para acionar a lei quando necessário ou para repensar a nossa forma de viver e conviver em sociedade.
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Sobre a série Por uma Vida Antirracista
Em 2024, pela primeira vez na história, o feriado de 20 de novembro – Dia da Consciência Negra – acontece em todo o Brasil. Para celebrar a nacionalização da data, a Vida Simples apresenta em seu portal a série Por uma Vida Antirracista. São seis matérias com reflexões sobre racismo, depoimentos de pessoas racializadas, e dicas para ter atitudes antirracistas. Entendendo o papel do jornalismo na promoção de uma sociedade informada e consciente, a Vida Simples traz à tona a luta de pessoas que, por vezes, não têm suas vozes ouvidas. A próxima matéria terá dicas para quem deseja ser uma pessoa – e viver em uma comunidade – antirracista.
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