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Como se libertar de um relacionamento abusivo?
Relacionamentos abusivos são fáceis de identificar. O difícil - mas não impossível - é sair deles (Foto: Unsplash)
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Gabriela Saab, nutricionista, percebeu ainda jovem que gostaria de ser empreendedora. Ao comprar uma empresa à beira da falência e seus negócios prosperarem, conquistou uma carreira de sucesso e de realizações pessoais. Mas, apesar das vitórias, percebia que algo continuava errado em sua vida.

A empresária, mãe de duas filhas, desenvolveu uma doença chamada alopecia, popularmente conhecida como queda capilar. Depois de muito tempo de tratamento, o médico a chamou para uma conversa em seu consultório.

Após mais de uma hora de troca, ele apontou: “Gabriela, você não tem nenhum problema clínico que justifique sua queda capilar. Nós já fizemos exames, diferentes tratamentos e seu cabelo continua caindo”. Nesse momento, Gabriela foi encaminhada para terapia.

Ao mergulhar fundo na psicologia e no autoconhecimento, Gabriela conseguiu enxergar o causador principal da sua doença: ela vivia um relacionamento abusivo, e sua condição foi desencadeada pelo estresse da relação.

“Nessa fase eu precisava ser submissa e era constantemente punida, gratuitamente. A relação tirou minha identidade e eu já não tinha mais direito de escolhas. É como uma prisão”, recorda Gabriela.

O problema da queda capilar, que durava anos, cessou quando ela resolveu romper o relacionamento e se afastou. “Eu compreendi que situações corriqueiras que normalizava eram tão graves que me fizeram adoecer, diz Gabriela.

O que é um relacionamento abusivo

Um relacionamento dá indícios de que é abusivo desde o começo. “A grande questão é que no início, muitas vezes, os abusos são sutis, o que impede que as vítimas percebam. Mesmo que sintam um desconforto, ele fica confuso e se mistura com a sensação de a vítima ser especial, escolhida”, explica Luanna Debs, psicóloga de mulheres e especialista em relacionamentos abusivos.

A profissional aponta que para perceber os traços de abuso em um relacionamento, é importante que as pessoas deem ouvidos às suas percepções e sensações, ou seja, à intuição, ao invés de tentar interpretar o parceiro o tempo todo.

“Relacionamentos saudáveis não deixam dúvidas. Quando uma pessoa está em um relacionamento abusivo, ela vai se sentir confusa, pisando em ovos, precisando ter cuidado com o que diz e faz, pois nunca sabe exatamente o que pode causar um problema no relacionamento”, explica Luanna.

Paulá Ramos, psicóloga especialista em gênero, relacionamentos e psicanálise afroreferenciada, reforça que é importante fazer uma auto-observação e perceber como a vítima de abuso sente-se em relação ao abusador.

“Por exemplo, eu sinto receio de fazer algo fora do controle do outro, eu tenho medo de falar sobre o que o outro me faz sentir, eu mudei alguns comportamentos e compromissos porque eles não agradam o abusador”, exemplifica a profissional, citando alguns sinais para refletir se o relacionamento está em um caminho saudável ou não.

Manipulação pela dependência é um sintoma clássico de abuso

Mesmo compreendendo que seu relacionamento é abusivo, nem sempre a vítima consegue se afastar rapidamente. Isso ocorre, segundo a psiquiatra Livia Castelo Branco, do Núcleo de Sexualidade da Holiste Psiquiatria, por conta da dependência que o abusador provoca e mantém, criando um ciclo viciante na relação.

“A dependência do parceiro, seja emocional ou financeira, é o principal fator que dificulta o distanciamento. Muitas pessoas se vêem sem saída, e não conseguem vislumbrar uma vida sem essa parceria”, explica a psiquiatra.

Além disso, o medo de vinganças, como agressão física, exposição moral ou prejuízo aos filhos, também impede muitas pessoas – principalmente mulheres – de sair de uma relação abusiva. Gabriela Saad conta alguns obstáculos que sofreu ao tentar se afastar do ex-parceiro.

“Quando falei em separação, ele começou a praticar diversos tipos de violência, tentativas de não permitir concretizá-la, como bloquear o cartão de crédito. Ele também orientou a portaria do condomínio onde eu morava a não dar acesso ao meu endereço a ninguém, e assim fui impedida de receber qualquer visita, ficando isolada”, relata a empresária.

A importância da rede de apoio

Geralmente, uma mulher que está em um relacionamento abusivo está isolada. “Ela pode até conviver com muita gente, mas não está conectada emocionalmente e não se sente segura para compartilhar o que vive”, explica Luanna. Segundo a psicóloga, por conta de abusos psicológicos, a vítima é levada a desconfiar das pessoas, sente-se envergonhada e culpada, e ainda acredita que compartilhar é errado, como uma traição ao abusador.

“A primeira ação que pode ajudar essa mulher a sair dessa relação é compartilhar o que vive com pessoas de sua confiança e procurar ajuda profissional especializada”, aponta a especialista.

Nesse sentido, ter uma rede de apoio é essencial. Luanna explica que a vítima precisa ter um lugar seguro, sem julgamentos e sem chantagens, para que ela possa se libertar em busca de relações mais saudáveis.

“Uma rede de apoio escuta sem julgar, não pressiona a mulher a terminar, mas sim dá apoio incondicional a ela (e não ao relacionamento), estando presente mesmo não concordando com as decisões, e escutando ativamente as necessidades da pessoa”, explica a especialista.

Quando a saída é o bloqueio

Uma vez que a vítima consegue se libertar da situação, é importante manter distância total do ex-parceiro. Não manter contato pode ser desafiador, mas é uma das ações mais importantes para que uma vítima de relacionamento abusivo consiga manter sua decisão pelo término e seguir em frente.

“Muitas mulheres têm dificuldade em se afastar, porque acham que podem terminar numa boa e ‘ser amigos’. Isso é uma fantasia e uma crença que acaba atrapalhando a recuperação. Relacionamentos abusivos terminam abusivos e homens abusivos não serão amigos, continuarão abusando se mantiverem acesso à vítima”, explica Luanna.

Culpa e trauma pós-término

Um dos maiores obstáculos do período pós-término está relacionado à capacidade de lidar com sentimentos de culpa e traumas gerados pela relação abusiva, de acordo com Paulá.

“Lidar com a culpa não é fácil. Em alguns casos as pessoas nessa dinâmica sentem que estão em dívida com o abusador, colocando sobre si toda a responsabilidade do fim da relação”, explica a psicóloga. Como consequência, é comum a pessoa sentir não ser boa o suficiente, e ter a ilusão de que faz tudo errado.

Como recuperar a autoestima pós-relacionamento abusivo

A vítima de um relacionamento abusivo sofre traumas que alteram sua percepção de si. “Com isso, a autoestima fica fragilizada, fazendo a pessoa acreditar que só merece este tipo de relação ou que mereceu tudo o que aconteceu”, aponta Paulá.

“Com o tempo e o isolamento, as habilidades que ela reconhecia ter vão ficando perdidas, os cuidados com ela vão ficando cada vez mais escassos, pois todo o cuidado e atenção passam a ser voltados para ele na tentativa de manter a paz na relação”, explica Luanna.

Nesse sentido, o autocuidado ajuda na recuperação da autoestima. Esse elemento é ainda mais valioso quando vem junto com o autoconhecimento, ou seja, a habilidade em escutar nossas necessidades e atendê-las.

“Autocuidado pode ser sobre cuidar da aparência, mas também pode ser um tempo consigo mesma vendo um filme que gosta, passeando ao ar livre, tomando um banho demorado ao som de uma música ou até mesmo ir ao médico fazer um check-up”, exemplifica a psicóloga.

Estar com as pessoas que ama, praticar coisas que gosta, fazer terapia especializada, adicionar atividades físicas e hobbies na rotina, são sugestões para recomeçar a vida de uma forma saudável.

“Ao terminar um relacionamento abusivo, a vítima precisa voltar a se relacionar com ela mesma e se dar a atenção que disponibilizava para o abusador, para se reconhecer, se ocupar e encontrar prazer em viver a própria vida”, complementa Luanna.

Se for preciso, peça ajuda jurídica

Quando o abusador demonstra estar inconformado com o fim do relacionamento, não é tão difícil identificar o perigo. Assim explica Margareth Zanardini, advogada há 43 anos na área de direito de família.

“Normalmente, o abusador já deu sinais, durante o relacionamento, sobre a existência de um risco à segurança da vítima. Assim, a primeira coisa a ser feita por qualquer mulher que tenha conseguido sair dessa situação é conhecer a lei número 11.340, de 7 de agosto de 2006, a famosa Lei Maria da Penha”, aponta a advogada.

O que muita gente pode não saber é que a violência doméstica e familiar não é apenas a física. O artigo 5º dessa Lei estabelece: “configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

“Vale ressaltar que algumas autoridades policiais podem desconhecer as alterações dessa lei, em especial as mais recentes, que acrescentam danos psicológicos e a não necessidade de tipificação criminal para a obtenção de uma medida protetiva”, aponta a especialista.

Além disso, a Lei também é aplicada para mulheres transexuais, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao considerar o aspecto de identidade de gênero, e não o biológico, para se aferir o direito de proteção trazido por essa legislação.

A advogada sugere que, quando a vítima se encaminhar à delegacia para registrar um abuso, leve consigo o texto atualizado da Lei Maria da Penha.

A superação transformou a vida de Gabriela

Passando por todas essas fases, Gabriela Saad conta que precisou estudar muito para se libertar da difícil experiência. “Me tornei neuropsicanalista, me especializei em psicologia jurídica, me tornei coach de desenvolvimento e graduanda em Direito. Foi quando compreendi que, se precisei passar por essa verdadeira experiência, adquirindo tanto conhecimento, então este seria meu novo propósito de vida: ajudar outras pessoas”, relata a empreendedora.

Em 2023, transformou sua experiência ao lançar seu livro, Abuso: Guia Prático*.

“Não foi fácil e certamente a profunda busca pelo autoconhecimento foi passo fundamental para reescrever minha própria história. Quando deixei de olhar para o que o outro deveria ou não fazer e voltei o olhar para mim, entendi que quando a gente muda, tudo muda”, reflete Gabriela.

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