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O que aprendi na estrada
eberhard grossgasteiger | Unsplash
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De cima da motocicleta vieram os ensinamentos para superar a perda do pai e entender nossa vulnerabilidade. As paisagens, afinal, nos mostram que a jornada da vida sempre continua apesar dos problemas que possam surgir durante o percurso

“É tumor e é maligno, filha.” As palavras repetiram-se embora minha mãe tivesse dito apenas uma vez, em tom trêmulo. A frase atordoou minha cabeça como uma música sem ritmo. Fiquei confusa enquanto abafava o choro no lenço floral que usava, na sala de espera do hospital, no dia em que tudo desabou. Quantas famílias não teriam ouvido coisas piores naquele mesmo local, sentadas naquele sofá azul?

Meu pai foi diagnosticado com câncer às vésperas de completar 50 anos. A doença, quando descoberta, já havia tomado o estômago quase por completo. De repente, vi o jeito prático, racional e matemático dele, um engenheiro mecânico que sempre adorou trabalhar com máquinas grandes, dissipar-se em um homem bastante abatido, e tive medo. A jornada, afinal, estava apenas começando.

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A Harley-Davidson

Montagem iStock

Quando a descoberta completou quase 30 dias, um detalhe me incomodou: meu pai ainda não havia ligado a motocicleta. Era tempo suficiente para eu notar. A Harley-Davidson branca – customizada com acessórios cromados e guidão elevado para dar o charme que ele queria – representava seu sonho de consumo. O modelo Road King (ou, em tradução livre, “Rei da estrada”) havia sido escolhido 18 meses antes por mim e pela minha mãe, já que ele queria que fizéssemos parte desse sonho e hobby.

Cresci sabendo da paixão do meu pai por motos – principalmente na categoria custom. Mas o sonho de consumo dele sempre foi uma Harley-Davidson. Ele não teve muitas motos ao longo da vida, porque queria investir mais nisso como um hobby, por isso desejava tanto uma Harley. Gostávamos de observar motos na estrada, visitar concessionárias e já tínhamos até as roupas próprias para a Harley, por exemplo, antes mesmo de comprar uma. Essas motos mais potentes, de passeio, sempre chamaram nossa atenção pela tradição, conforto, beleza e ronco do motor. Quando uma passava por nós na rua, meu pai sempre reconhecia o som.

No banco do carona

No 30º dia pós-descoberta-do-câncer, com as esperanças um tanto renovadas e uma provocação minha durante o café da manhã – “A moto não vai sair da garagem, não?!” –, meu pai decidiu sair comigo pela primeira vez desde que soube do seu diagnóstico. Na ocasião, eu e ele na rodovia Dom Pedro, flutuando feito pássaro, me dava a sensação de que nada daquilo estava realmente acontecendo. Experimentei a leveza que havia muito não sentia.

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Nesse dia em que resolvemos sair, após o câncer dele nos roubar o chão, fizemos um pouco de tudo o que ele gosta, e sem pressa. Chegamos às 9h30 da manhã de um sábado ao centro de Morungaba, interior de São Paulo, onde tomamos um cappuccino de tamanho generoso e comemos um pão de queijo em uma loja que vendia geleias de fabricação própria. O empreendimento também abrigava um pequeno sebo, com livros e discos em várias línguas e gostos.

Comprei uma edição antiga e amassada de A Revolução dos Bichos, do inglês George Orwell. Pouco antes de seguirmos viagem, passamos em um local que ficava do outro lado da rua e exibia, em suas prateleiras, mais de 70 variedades de ervas e especiarias. Compramos noz-moscada para minha mãe e olhamos os diferentes vidros de pimentas, perdidos em meio às opções de cores e texturas. Colocamos as coisas em uma das bolsas da Harley-Davidson e prosseguimos em direção a Pedreira, localidade próxima à Morungaba.

A vulnerabilidade

Nesse trecho da viagem, me redescobri frágil. Fiquei preocupada com a estabilidade da motocicleta, ao passo que meu pai nos conduzia ora muito próximo ao acostamento, ora passando por todas as tartarugas na linha central do asfalto, que dividia as faixas. Comecei a pensar em morte. Não porque meu pai subitamente começava a pilotar em zigue-zague.

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Mas porque sempre achei que minha morte estaria ligada a um acidente de carro. Era um pensamento forte que me atormentava havia alguns anos, embora eu não tenha acumulado traumas muito grandes relacionados aos carros. Como a moto nunca foi alvo de minha insegurança, ou tampouco preocupação, me tranquilizei minutos depois.

Meu pai interrompeu esses pensamentos quando gritou algo por dentro do capacete, sugerindo que em seguida pararíamos no centro da cidade de Pedreira. Pouco tempo depois, estávamos lá. Especificamente dentro de uma loja de placas e ímãs variados – em estampas do Elvis, de motocicletas, de propagandas vintage da Cola-Cola e o que mais se pode imaginar. Meu pai procurava placas com ilustrações e fotografias relacionadas à Harley para colocarmos no quintal de casa, junto às outras que possuíamos.

Sentir a plenitude da vida

Arquivo pessoal

Seus olhos sorriam o tempo todo, numa espécie de renovação que se sobrepunha às novidades da doença – como a careca que teve de adotar após os fios de cabelo começarem a cair em tufos, tamanha a força da quimioterapia em seu organismo. Compramos alguns itens de decoração e seguimos viagem até nossa casa, antes que as nuvens escuras e densas despejassem uma chuva dolorosa na estrada.

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Não deu outra. No final do percurso, começou a chover. Primeiro fininho, mas doía, e depois forte demais. Quando chegamos em casa, estávamos encharcados e exaustos. Eu com gripe forte, meu pai com câncer. Era o que a minha mãe precisava para nos acusar de “irresponsáveis”. Mas, apesar da preocupação, aquela volta trouxe um pouquinho de brilho aos nossos olhos, como se voltássemos a ter a mesma visão tranquila, quando o câncer era um problema distante (bem longe da minha família).

A parte mais bonita de todo o trajeto foi dividir as inseguranças na estrada, enquanto os pássaros tomavam o céu e as paisagens verdes dançavam com o tempo, conforme passávamos rápido demais pelas fazendas. Nessa hora, o sol reinava forte sobre nós, mas a luz também vinha da liberdade em estar onde se quer apesar dos obstáculos. A estrada nunca foi nosso caminho, afinal, e sim o destino. O desejo de sentir a plenitude da vida apesar de ela ser frágil.

Uma mesma paixão

Infelizmente, essa foi nossa última vez juntos na estrada. Com o passar dos meses, a doença avançou, se espalhando pelo corpo, e o tratamento quimioterápico o deixava fraco demais para pilotar. Aliás, ele não tinha forças sequer para andar, tamanha a sensibilidade e o peso que sentia do próprio corpo. Nessa fase, algumas internações foram necessárias para que a alimentação e o organismo do meu pai se reestabelecessem.

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No meio de tudo isso, a promessa de voltar à estrada era uma meta e uma analogia à própria vida e que ainda fazíamos questão de alimentar sempre. “Eu ainda tenho alguns quilômetros para rodar”, ele dizia. Achávamos que se tratava apenas do motociclismo, mas ele também se referia aos anos de vida.

Eu alternava as idas ao hospital com o meu trabalho, como assessora de imprensa de uma consultoria, e também à produção de um livro de fotojornalismo sobre mulheres envolvidas com o hobby do motociclismo. Durante dois meses, frequentei a concessionária onde meu pai comprara a Harley-Davidson dele para entrevistar e fotografar mulheres que, assim como ele, amavam dividir suas preocupações com o asfalto para – quase que automaticamente – receber a bênção da liberdade e a beleza das paisagens enquanto pilotavam.

Válvula de escape

Nesse período, acumulei mais de mil cliques e incontáveis caracteres de depoimentos e entrevistas. Eu via o brilho dos olhos do meu pai (de quando pilotava) nos olhos de muitas mulheres com quem conversei. E depois voltava a ver essa mesma vitalidade quando mostrava o material ao meu pai. Ele vibrava ao acompanhar um trabalho que tinha tanto a ver com ele, mesmo não o envolvendo diretamente.

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Quando o livro foi impresso, só conseguia pensar como meu pai reagiria ao ver um projeto inspirado no motociclismo, uma atividade que ele escolhera como hobby e paixão. Deixei que ficasse com um exemplar enquanto estava deitado sozinho no quarto, já que eu não queria interferir na leitura ou observação das fotografias. Era um momento de intimidade. A leitura seria um espelho refletindo sua relação e paixão pelas máquinas de duas rodas.

A produção do livro me ajudou a entender a importância do vínculo com uma atividade que renda prazer, como uma “válvula de escape”. A estrada sempre forneceu, ao meu pai, uma energia de renovação pela vida, mesmo após a descoberta do câncer. Era um sinal de esperança e uma possibilidade de cura, que não se concretizou.

A estrada da vida

Arquivo pessoal

Meu pai faleceu uma semana após o término do livro, num quarto de hospital. Eu vi meu companheiro de aventuras respirar pela última vez duas semanas antes do Natal e me abalei com a rápida viagem que ele teve pela Terra. Foram dez meses de luta contra uma doença que evoluiu de forma agressiva e ligeira, semelhante à potência de uma motocicleta de alta velocidade na estrada, que passa rasteira demais para ser assimilada aos detalhes, mas também barulhenta o bastante para não ser ignorada.

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Tive consciência de que os quilômetros rodados da vida valem pelas companhias de viagem que acumulamos durante o percurso – nossos amigos e familiares – e pelas lições observadas ao longo do caminho. Há um jargão entre os motociclistas que diz que nós apenas observamos a paisagem quando estamos dentro de um carro, mas, em cima de uma moto, fazemos parte dela. Considerando essa afirmação e tendo consciência de que a natureza está sujeita a todo tipo de intempérie, somos paisagens expostas. Belezas frágeis.

Meu pai, dentre tantos ensinamentos, me ajudou a entender o valor, a complexidade e a vulnerabilidade da vida como uma estrada: um caminho cheio de obstáculos até chegar às paradas e aos destinos preparados para cada um de nós. Somos as belezas dos caminhos que percorremos. Mas também somos paisagens expostas e frágeis.

Carolina Barboza descobriu o amor pela escrita quando sentiu a necessidade de compartilhar o que ficava guardado dentro da alma e do coração.

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