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Um homem florista
Galeria Trindade
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Fui aluno militar da  marinha, me formei em direito mas onde encontrei um alinhamento verdadeiro com a minha essência foi nos arranjos de flores

Eu, Rafa Rios, sempre fui uma criança emotiva, sensível, expressiva e com uma veia artística bem clara. Fiz curso de teatro, figuração em novelas desejando ser ator. Depois quis ser veterinário por amar e cuidar de animais e gostava de brincar de forma lúdica e criativa.

Quando eu tinha por volta de uns 13 anos, sem perceber conscientemente isso, comecei a me enquadrar em padrões masculinos que eram esperados de mim por pressões sociais e familiares com relação a comportamentos, profissão, carreira, vida financeira etc.

Estudei muito e passei no concurso para ser aluno militar da Marinha, onde cursei o ensino médio e me tornaria oficial das Forças Armadas. Fiquei lá dos meus 15 aos 18 anos. Foi um período bem difícil, em que não era permitida a demonstração de sentimentos que não agressividade e competitividade no reforço da virilidade. Tornei-me um jovem mais calado, frio e indiferente. Por decidir não continuar na carreira militar, reuni forças para sair e, no dia da concretização da saída, vi pela primeira vez meu pai chorar.

Por precisar continuar me sustentando, segui o caminho dos concursos públicos por estabilidade, remuneração e status social. Silenciei minha essência emotiva, criativa e artística e me formei em direito. E assim segui, sem me conhecer, sem olhar para mim e pulando de cargo em cargo, sempre insatisfeito e querendo mais.

No início de 2016, com 30 anos e recém-casado, após a reprovação num concurso que desejava muito, decidi, por estar sufocado em emoções com as quais não sabia lidar, que pararia, enfim, para cuidar de mim e da minha relação afetiva. Percebi que havia me anestesiado durante muitos anos e que não sabia quem eu era, o que queria, o que gostava, qual era minha função no mundo, meu lugar, minha missão de vida.

Pouco tempo depois, ao buscar alguma atividade que me desse prazer, vontade e que me fizesse feliz, recordei-me da alegria de oferecer flores a minha avó e minha mãe quando pequeno e de, atualmente, levar flores para minha companheira e para nossa casa.

Ao observar os sinais do universo, decidi começar a fazer arranjos de flores para materializar todos os sentimentos que estava vivenciando e fui fazer um curso de florista. Desde o primeiro momento, foi maravilhoso sentir as flores, a energia e a conexão com a natureza que elas proporcionam. Tive a certeza de que esse era o caminho: tornar-me florista.

Ao iniciar nessa nova profissão, percebi que não conseguia me entregar totalmente, aceitar e mostrar ao mundo que eu, homem, advogado e ex-militar, tinha me descoberto florista. Sentia internamente os reflexos da masculinidade frágil e externamente pressões sociais por ser uma profissão tida como feminina. Apeguei-me ao medo, à vergonha, à insegurança e ao julgamento.

No processo de autoafirmação, que transcorreu por mais de um ano, chamou-me a atenção o fato que os homens do meu convívio não tocavam no assunto do trabalho com as flores. Dei-me conta de como nós, homens, não estamos acostumados a lidar e a falar sobre sentimentos, emoções e sensibilidades.

Sou muito grato a este processo de encorajamento por meio das flores, pois dei início a um processo contínuo de ressignificação da minha masculinidade, dos meus relacionamentos afetivos e profissionais e me permiti iniciar uma jornada de autoconhecimento, autodesenvolvimento e espiritualidade que me levou a participar de um grupo de homens que discute masculinidades: o Brotherhood, fundado pelo Gustavo Tanaka.

Em meados de 2018, tive o prazer e o privilégio de facilitar uma oficina de arranjos florais para homens no grupo e vivenciei uma transformação e uma quebra de paradigmas em prol do exercício de masculinidades saudáveis. Dei um novo rumo ao trabalho com as flores, troquei o nome do instagram para @umhomemflorista e passei a focar em oficinas de arranjos florais onde compartilho o talento que descobri com outras pessoas oferecendo o porquê do meu trabalho, revelando a expressão de minha essência e a realização que sinto ao estar em contato com as flores.

Hoje, além do trabalho com as flores e o exercício do cargo público, que ainda ocupo por estar em processo de transição de carreira, participo de rodas de conversa, cursos, eventos, palestras, documentários e entrevistas sobre masculinidades e quero cada vez mais viver, estudar, compartilhar e trocar sobre o assunto para aliar o autoconhecimento com o ativismo social e político.

Acredito que o caminho de evolução e justiça social, que passa pela cura do masculino distorcido, não é somente individual, é um processo coletivo, com vários focos e interseccionalidades com relação à raça, classe, orientação sexual, identidade de gênero, cultura, território e entendo que, quando damos um passo para a mudança, estamos influenciando, direta e indiretamente, outras pessoas a se olharem e se transformarem em prol de uma sociedade mais inclusiva, equitativa e pacífica.

Que nós, homens, possamos conversar mais, pedir ajuda, nos vulnerabilizar e nos permitir experimentar a liberdade de sermos quem quisermos ser fora das definições rígidas de um modelo único de masculinidade a fim de acabarmos com todas as formas de violência contra todas as pessoas e contra nós próprios e vivermos de forma amorosa, afetuosa e cooperativa.

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