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Quando a palavra mia
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A observação da natureza é para o escritor moçambicano Mia Couto a essência de sua escrita. É entre as flores, as folhas e os bichinhos que as histórias nascem dentro dele e ganham o mundo

Antes de tornar-se escritor e biólogo, Mia Couto desejou ser gato. Por isso, ainda na infância, decidiu que o seu território sagrado seria a varanda da casa entre os felinos das redondezas. Aliás, foi justamente nessa época, em companhia de malhados, acinzentados e pretos, que contestou o nome de batismo: Antonio Emílio Leite Couto. A partir daquele momento crucial, desejou ser tratado apenas por “Mia”, em uma alusão melódica aos miados chorosos dos amigos de leite, de brincadeiras e de terra batida.

Pode até parecer história da carochinha, daquelas contadas pelas avós à beira da cama, mas esse relato, com pitadas de encantamento, foi-me contado pelo próprio escritor moçambicano, um dos mais aclamados da língua portuguesa
na atualidade, durante uma de suas viagens ao Brasil. Contudo, o nosso bate-papo manteve-se em sono profundo em meu celular. Para mim, eram vozes adormecidas. Com a recente passagem do autor de Terra Sonâmbula (Companhia das Letras) pelo país, resolvi acordá-las de um fadado esquecimento.

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Tal como os gatos da infância, Mia Couto tem gestos comedidos. As palavras pronunciadas, por sinal, seguem o mesmo ânimo durante a conversa. Até parece que são pensadas e repensadas a cada nova resposta. Afinal, nada é dito apressado ou em lampejos de euforia pelo escritor, que faz questão de transmitir essa sensação ao interlocutor. Aliás, para conquistar de vez a atenção dele, há uma vereda irresistível: experimente aproximar no mesmo fio de prosa os seus dois fascínios, literatura e biologia. Experimentei.

Entrevista com Mia Couto

Hora de voltar à Beira, sua cidade natal. Gostaria que abrisse a janela da infância. Ao mirar os olhos no horizonte, qual paisagem ainda enxerga?

A de uma pequena cidade, que estava cercada pela savana africana, que é muito rica pelo ponto de vista da biodiversidade. A própria cidade tinha dificuldades em se afirmar como um espaço urbanizado. Era um pântano, um estuário. Portanto, quem mandava eram os ciclos naturais, as marés. Às vezes, apareciam animais selvagens no meio da cidade. E minha família passava o fim de semana no Parque Nacional da Gorongosa, provavelmente um dos mais belos parques de fauna de todo o continente africano. Por isso, percebo que o fascínio por esse espaço do qual o homem não é dono é muito antigo em mim.

Tal fascínio lhe concedeu privilégios, inclusive o de ter dois nomes. Antonio, o de santo, recebeu na pia batismal. O outro, curto e sonoro: Mia, veio por meio da paixão pelos gatos da vizinhança. Conte me a história desse autobatismo.

Minha mãe deixava restos de comida numa varanda aberta, que dava para a rua. Juntavam-se dezenas de gatos, que comiam e dormiam por lá.

Há fotos que me mostram, ainda menino, dormindo e comendo junto com os gatos. Para mim, não havia muito a distinção entre ser bicho e ser pessoa. Acho que nós todos nos fizemos humanos por meio das relações e do contato com os animais.

Quando tinha dois anos e meio, “Mia” foi o nome que declarei que gostaria que me chamassem, em homenagem aos gatos. O mais curioso foi a aceitação dos meus pais. Eles acharam que eu já tinha a competência e o direito de me renomear. Hoje, se me chamarem de Antonio, eu não sei quem é.

A divulgação de sua escrita nasceu contrariada. Como foi saborear esse sentimento logo na primeira publicação?

O meu escrever vem desde os 12 anos. Aos 14, vi publicado um poema de minha autoria, que fiz para o meu pai. Chamava-se Poema para o Meu Pai. Ele próprio o publicou em um jornal. Quase me zanguei com ele, porque não fui consultado. Justamente na noite daquele dia em que foi publicado, eu fui assistir a uma declamadora que vinha de Portugal para se apresentar. Durante a apresentação, ela disse: “Li hoje um poema no jornal”, e o declamou. Foi algo terrível. Quase morri, porque o poema era uma coisa íntima para mim. Hoje, percebo que se não fosse isso talvez nunca tivesse tido coragem de publicar algo.

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Ao ler suas obras, o leitor percebe a relação harmônica entre a literatura e a biologia. O casamento vem desde sempre?

As duas se misturam. Quando comecei a publicar, praticamente já tinha abraçado a biologia. Todos os meus livros são resultado dessa confluência de sensibilidades que ocorreu dentro de mim. A biologia é mais do que uma profissão, mais do que uma visão científica… é uma grande paixão, uma maneira de ficar próximo daquilo que é importante para mim: a vida. A biologia me permitiu ter intimidade com outros seres, com as outras criaturas que parece que não têm linguagem, mas têm. Entender essa linguagem foi fundamental para mim.

Certa vez, você disse que se considerava estrangeiro no Brasil porque não sabia conversar com as árvores daqui. Após tantas idas e vindas, conseguiu aprender o dialeto das nossas espécies?

Estou resolvendo essa questão. Há algum tempo levei de Minas Gerais algumas sementes de ipê-amarelo. Esses ipês foram plantados em minha casa de campo e já floriram. É como se eu tivesse o Brasil plantado no meu próprio lugar. Também aprendi a olhar para o Brasil, sobretudo para a vegetação. Para mim, a árvore tem algo de mágico. A partir delas, estou percebendo melhor esse país.

Quais são os ensinamentos para conhecer e praticar fluentemente o abecedário das árvores?

A árvore tem uma linguagem e diz coisas. Não é algo que estou romantizando. A árvore se expressa por cores, por cheiros, por como se desenha e pela estrutura. Tudo nela me diz coisas. Por exemplo, olho para ela e vejo o tempo. Passo a ter a noção de um tempo mais longo, mais dilatado, mais calmo, que não é o nosso. Tudo isso é uma aprendizagem. Tornar-me mais sensível a essa fala vem de uma relação que foi-me passada pelos meus pais. Reconhecer uma criatura aparentemente distante como alguém que é próximo da gente faz todo sentido para mim.

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Caso pudesse retornar à Terra em outra missão, que não fosse a de biólogo ou de escritor, mas como uma árvore, qual seria?

Tenho um grande fascínio pelas palmeiras. Porém, não sei se queria ser uma. A África é pobre em palmeiras. Eu acho que queria ser… É difícil escolher apenas uma. Há várias em Moçambique, mas vou escolher uma: o frangipani.
Ela tem uma flor com cheiro intenso, que é branca com o interior amarelo, rosa ou laranja. Quando os galhos quebram, descobrimos um látex. Eu mesmo, por conta dessa árvore, escrevi um livro, A Varanda do Frangipani (Companhia das Letras).

O escritor russo Tolstoi ensinou: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Você divide esse aprendizado ao cantar Moçambique?

Sim, cada vez mais. Esse mundo, que nos dizem que é uma aldeia global, é um mundo que parece que somos todos, mas nunca alguém é exatamente alguém. Essa procura do que é particular, e que os outros reencontram como sendo comum, é um caminho que eu aprecio na literatura, no resto e em tudo.

A cada nova viagem pelas aldeias de Moçambique, o seu baú de histórias volta mais pesado. Como trabalha com a pluralidade dessas vozes?

Todos os dias, escuto histórias que podem ser emprestadas do chamado realismo fantástico, mas que são encaradas como naturais. Algo do tipo: “O vizinho do lado se transformou essa noite em um leopardo”. Do ponto de vista de sugestões para a literatura, episódios como esse são felizes. O meu exercício como escritor é o de fazer uma triagem do que eu não vou usar, porque o material que me chega é muito rico.

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Aonde quer chegar com a literatura?

Não sei se quero chegar a algum lugar. Eu quero é ser mais feliz. Evidentemente, quero fazer algo que possa mudar um pouco o mundo. Se a minha literatura puder, de um modo pequeno e sem ambição, espalhar a ideia de que é possível sonhar e que esse sonho vale a pena, certamente ficarei feliz.

Tiago Gonçalves é de Três Corações (MG), onde conversava com uma árvore: o limoeiro da casa da “Vó Neuza”.

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