Pesadelo sem dor
A negação da nossa natureza nos afasta de nos libertarmos do lado sombra que todos nós carregamos
A negação da nossa natureza nos afasta de nos libertarmos do lado sombra que todos nós carregamos
Acordei transtornado, uma ebulição de raiva, medo, ressentimento e vergonha. Minha reação é silenciar e observar as emoções que reviram em mim. Tomar distância ia ser impossível. O sol ainda não acendia o parapeito da varanda. Uma boa meia hora de respiração ritmada e a prática de reconhecer e deixar ir me acalmou um pouco. Sustentei a memória do sonho, identifiquei que não conseguiria aguentá-la muito tempo e, presente, desviei a atenção para voltar ao assunto depois.
Algumas posturas de ioga e sentei em silêncio com as memórias da noite: o chão era de terra batida, a rua ampla e lisa. A luz de lusco-fusco dava uma cor cansada à rua. Bem lá na frente duas bicicletas iam lentas, sinuosas, uma delas com uma segunda pessoa na barra.
À medida que me aproximei, o absurdo, um deles tirou da bolsa a tiracolo um rojão. Nenhuma reação me foi possível. O tubo de papelão grosso apontou à frente, preciso. Um arco cortou a pouca luz do céu e explodiu lá na frente, ao lado da cabeça de alguém que pedalava longe.
Reagi na velocidade do estouro, protestando e xingando, cheio de gerúndios, para me ver lento de novo numa enrascada horrenda como a cena que se passara. O sorriso do fulano escapou devagar e cru, em sincronia com minha boca e narinas contraindo. Só me lembro de perceber o medo dos três e de depois estar preso pelos braços. O fulano exibindo o brilho fosco de uma peça de metal chapado e me dizendo: “O que eu gosto é que ela não é afiada”. As lembranças são confusas, meu rosto no chão, um saber estrangeiro de que minhas costas são abertas.
Memórias, emoções
Agora que conto de novo, a surpresa: não há memória de dor. Apenas emoções: indignação, raiva e vergonha, mas não é só isso. Um desejo pungente emerge da base da minha espinha. Como dominó, meus pensamentos planejam a vingança, meu peito pulsa: ódio e vergonha.
Entretanto, o ritmo é de novo frenético, detalhes de como ir à forra tomam cadência, até que me dou conta do buraco que ainda come meu peito. Envergonhado, tento largar a emoção corrosiva, mas em seguida já sou capturado por pensamentos que voltam a me alimentar: mesmo sem raiva é preciso livrar o mundo dessa escória, nem que seja sem dor, uma injeção caridosa. Os dias passam, mas a memória não. Sempre que a rotina amaina, volto às lembranças e tolerante de minha sombra a deixo ser. Nesses momentos, outras raivas velhas aproveitam para aparecer no fundo do quarto, se entretecem, e na meada emerge um padrão: inegavelmente a vergonha da sombra, a negação da raiva. Então, um querer não ter minha natureza, que é.
Menos passional compartilho esse sonho ruim e percebo que o pior não é a dor, mas ser arrastado pela sombra
Lucas Tauil de Freitas observa suas sombras e joga luz na roda de opressão que não quer virar.
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