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Os danos da autocrítica
Pietro Tebaldi | Unsplash
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“Não acredito que você fez isso”, ela disse. “Como pôde achar que era a decisão certa? Foi errado.” “Você fez errado.” “Como consegue? Você faz tudo sempre errado.” A dureza das palavras, especialmente das últimas, me chamou a atenção. Não porque viesse de uma amiga, de um companheiro ou de um parente particularmente cruel — nesse caso, eu poderia contestar; dizer que a pessoa estava exagerando, que não era verdade.

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Poderia simplesmente me afastar, caso o julgamento fosse recorrente e eu percebesse se tratar de um relacionamento tóxico. Mas o problema era que as palavras vinham de uma voz que está sempre comigo. E aí não dava para escapar. Aonde quer que eu fosse, lá estava ela.

E, ao contrário do que faria com um colega que me dissesse as mesmas coisas, eu não conseguia protestar. Acreditava na voz e me sentia péssima. “É verdade”, pensava. “Faço tudo sempre errado. Até um relógio quebrado consegue acertar duas vezes por dia, mas eu não. Deve ser uma espécie de recorde.”

Autocrítica

Essa voz tão dura, sempre com um chicote na mão, pronta para atacar ao menor sinal de erro, é aquilo que chamamos de autocrítica. Todos temos a nossa versão dela. Talvez a sua não seja tão cruel – minha voz sempre gostou de um melodrama. Mas mesmo quem tem a sorte de possuir uma voz mais razoável às vezes pode se ver em dificuldades, lidando com padrões e expectativas impossíveis de alcançar.

E não, não é possível fazê-la calar completamente. Mas dá, sim, para diminuir o peso de suas palavras, suavizar suas mensagens. Ao contrário do que você pode imaginar, isso não vai torná-lo menos produtivo nem mais relapso. Mas vamos por partes.

crítica Crédito: Jesse Bowser | Unsplash

De fora para dentro

“Toda voz interna já foi uma voz externa em algum momento”, afirma o psicólogo Flávio Voight, da Oriente Psicólogos Associados, de Curitiba. Tudo começa lá no primeiro ano de vida, quando o bebê, até então com uma visão muito difusa de si mesmo, começa a se enxergar como uma unidade. “Uma unidade corporal mesmo, uma imagem. Narciso vendo a si próprio no espelho”, explica a psicanalista Vera Iaconelli.

A criança passa a se enxergar como uma estrutura organizada, uma versão de seus pais. A autoimagem criada ali é o que a gente chama de “eu”, e é fundamental para nos entendermos enquanto ser humano. “É importante, mas é uma ficção também. Não somos uma imagem fixa, somos uma confusão, uma transformação perene”, diz Vera.

Crítica e proteção

Essa imagem é espelhada em modelos ideais, que são os pais. Como criança, você precisa deles para comer, proteger-se. Isso ainda não é consciente, claro. Mas aos poucos a criança entende que sua vida depende disso, e conquistar a afeição e a aprovação deles torna-se essencial. “E ela passa a tentar conquistar esse amor realizando as coisas que acredita que vão deixar seus pais felizes, aquilo que eles demonstram valorizar”, diz Flávio.

Esses valores podem ser passados de forma direta, como a mãe severa que critica às claras o peso da filha, ou de forma indireta, caso da família que direciona seu carinho aos integrantes que trabalham muito.

Não há como escapar

Esses valores e aspirações acabam sendo internalizados, virando a tal voz interna, aquilo que Freud chamou de “superego”. E é impossível escapar dele. “Todos, em algum momento, vão olhar no espelho e sentir que algo está faltando”, diz Flávio. Passamos o resto da vida com esses modelos, que podem ser substituídos por outras pessoas, deixar de ser os pais, mas continuam lá.

Por um lado, a gente precisa disso: os modelos funcionam como a cenoura na frente do burro, nos guiam, inspiram, motivam a continuar. É o lado da voz que incentiva: “vamos lá, você pode mais”. “Se os pais não apostam na criança e acham que ela não precisa tentar nada, no fundo estão dizendo que ela não consegue”, afirma Vera.

autocrítica Crédito: Vadim Artyukhin | Unsplash

Sempre o outro

Por outro lado, uma pessoa sem autocrítica, que nunca sente culpa ou vergonha, é incapaz de se responsabilizar pelos seus atos. São os quadros mais próximos da psicopatia. “A pessoa não internalizou nada da empatia; sempre é o outro que é culpado”, diz a psicanalista. Falta de autocrítica, nesse sentido, é coisa grave. Mas tem uma medida, que é da ordem do humano. “Se for da ordem do superman, a pessoa está supondo um ideal.” Esse é o lado que vai simplesmente te botar para baixo e te chamar de burro, de incapaz.

O importante é lembrar que esses modelos são idealizados. E, portanto, de saída, inalcançáveis. Tentar atingi-los trará, inevitavelmente, alguma frustração. E é aí que começam a surgir os problemas.

Autocrítica e crueldade

Quando a pessoa fica muito ciosa da imagem que criou de si mesma, quando está muito colada nessa narrativa, a situação pode ficar feia. “Você conta para si mesmo uma história de quem você é, e qualquer deslize ali pode ser muito desorganizador”, explica Vera. É o caso, por exemplo, dos investidores na Bolsa de Valores durante a crise de 1929. A identidade deles estava ligada ao fato de serem homens muito ricos. Então a bolsa desabou e o dinheiro sumiu. Incapazes de suportar a ruptura de sua autoimagem, muitos se suicidaram.

O mesmo acontece com uma mulher conhecida por sua beleza, e que construiu sua noção de valor em torno disso. Ao envelhecer e ver os encantos diminuírem, o desespero bate.

A voz interna pode ser particularmente sádica e cruel. A pessoa se diminui, se deprecia, se xinga. Normalmente, essa cobrança é projetada para fora: em geral, quanto mais dura a pessoa é consigo mesma, mais severa será também com os outros. “A sensação é de justiça. Não é justo eu fazer tanto esforço, me cobrar tanto, trabalhar 14 horas por dia, enquanto você está tranquilo com oito”, explica Flávio.

Autocrítica na vida adulta

É assim com pais que são muito severos com os filhos, por exemplo. Importante ressaltar, porém, que essa regra não é absoluta. É possível ter pais super-rígidos e dar de ombros, pensando, inconscientemente, que, já que não é possível acertar, não vou nem tentar. Assim como é possível ter uma família superafirmativa, e mesmo assim se tornar um adulto que se cobra em excesso.

Ok, sabemos que a voz faz parte de nós. Mas será que estamos condenados, então, a essa autotortura? Felizmente, não é bem assim. Não dá para eliminar a autocrítica totalmente, mas dá para negociar melhor com ela. Suavizar o tom. O primeiro passo é encarar o problema. “Se você não está bem, é hora de parar e olhar, porque isso é uma mensagem que você colocou no mar com o intuito de dizer: bom, talvez eu não me encaixe nisso”, diz Vera.

Tudo bem ser aceitável

É o caso de perguntar: será que isso serve para mim? Será que esses modelos criados pela sociedade nos servem, ou apenas nos assombram? “Se te paralisa, é porque não te serve”, diz Vera. Vale também aprender a conhecer seus limites. “É válido achar que posso fazer mais. Desde que eu tenha uma avaliação sincera do que eu sou capaz”, afirma Flávio. “Talvez eu realmente possa menos. E isso não quer dizer que não mereça amor.”

Uma saída interessante pode ser rir de si mesmo. Vera gosta da metáfora do palhaço: em vez de levar a sério as próprias questões, tentar ser alguém que dá risada quando cai. Às vezes, também, é o caso de convocar nossa sombra – aquelas características de que não gostamos muito – para nos defender. “E aceitar que eu procrastino mesmo, que tem um lado meu que não dá a mínima para esse trabalho”, diz Flávio. É um jeito de ligar o dane-se. E conseguir entregar algo não perfeito, mas aceitável.

Autocompaixão, um antídoto

Por muito tempo, propagou-se a ideia de que a autoestima seria um excelente antídoto para a autocrítica. Nos últimos anos, porém, isso tem sido questionado. Apesar dos benefícios da autoestima, como gostar mais de si mesmo, pode haver efeitos colaterais ruins, como o narcisismo e o egoísmo. Pensando nisso, a psicóloga e pesquisadora americana Kristin Neff encontrou no budismo o que considera um contraponto melhor: a autocompaixão.

“Ela oferece a mesma proteção contra a dura autocrítica, mas sem a necessidade de nos vermos perfeitos”, escreve em Autocompaixão: Pare de se Torturar e Deixe a Insegurança para Trás (Lúcida Letra). Segundo Kristin, a autocompaixão tem três componentes: a bondade para consigo mesmo; o reconhecimento de nossa humanidade compartilhada; a atenção plena.

autocrítica Crédito: Jd Mason | Unsplash

Autocrítica desde cedo

A autobondade é a capacidade de sermos gentis e compreensivos conosco. E ela começa por interromper o fluxo de autodepreciação. Imagine que você conversa e faz uma crítica a uma criança. “Você conseguiria usar as mesmas palavras em seu diálogo interno? Se sim, tudo bem. Se não, você está passando do ponto”, afirma Flávio.

Além disso, a autobondade inclui a capacidade de nos confortarmos da mesma maneira que faríamos com um amigo que está sofrendo. “Essa gentileza conosco é uma habilidade que pode ser treinada”, diz Caroline Bertolino, psicóloga e especialista em autocompaixão, autora de um blog sobre o tema. “É aprender a observar do que a gente precisa naquele momento.”

Cuide-se

Pode ser, por exemplo, dar-se um abraço. Da mesma maneira que uma carícia feita por outras pessoas, o autoabraço estimula a produção de ocitocina, apelidada por pesquisadores de “hormônio do amor e da união”, e reduz o medo e a ansiedade. Se você gosta de escrever, fazer um diário da gratidão ou escrever uma carta para você mesmo, como se fosse um amigo compassivo, podem ser boas ferramentas.

O segundo elemento da autocompaixão é o reconhecimento da experiência humana comum. As circunstâncias podem variar, mas todo mundo se sente incapaz e inadequado em algum momento. Se nos sentimos indignos de receber amor por conta de nossas falhas, acabamos nos afastando dos outros. “Se nos lembrar, a cada queda, que o fracasso faz parte de uma experiência humana compartilhada, então esse momento se tornará um episódio de união, e não de isolamento”, afirma Kristin.

O terceiro ingrediente é a atenção plena. Uma visão clara e sem julgamento do momento presente. Em vez de apenas sentir raiva, perceber: estou com raiva. E aí olhar para essa emoção com curiosidade, sem achar que somos definidos por ela. Como a dor se manifesta no corpo? Sinto falta de ar, peito apertado? E então, aos poucos, a emoção começa a se dissolver. Meditar, estar na natureza, respirar de forma profunda, todas são maneiras de se conectar melhor com o instante.

Atingindo seus objetivos

Você pode estar pensando: “Ok, mas, se eu deixar a autocrítica de lado, tudo vai desabar. Ficarei menos produtivo, serei uma pessoa arrogante”. “A pessoa sente que, se ela soltar o volante um pouco, vai descarrilhar”, afirma Flávio. Mas isso não é verdade. No caso da produtividade, por exemplo, um estudo da Universidade de Bishop, no Canadá, aponta que pessoas com menos autocompaixão tendem a procrastinar mais e apresentam índices mais altos de estresse. “Você se sente menos capaz e tem mais medo de errar”, diz Caroline Bertolino.

A pesquisa sugere que ser gentil consigo ajuda as pessoas a aceitarem a procrastinação, entendendo que ela faz parte do ciclo da autocrítica. A sensação de bem-estar que vem dessa postura pode ajudar a assumir mais riscos e, finalmente, fazer o que precisa ser feito. Isso vale também caso você esteja começando a se criticar por ser tão autocrítico. Entenda que esse mecanismo foi uma forma que sua mente encontrou de te proteger. A chave é se tratar com mais gentileza, questionar essa voz, mas não se abater ainda mais por isso.

Vida após o erro

A ironia é que, quando finalmente nos aceitamos, aí é que conseguimos mudar. Em vez de ficarmos nos chicoteando pelo que (não) fizemos, podemos nos responsabilizar, e fazer algo a respeito. “A autocrítica identifica o ator com o comportamento. Se falei de forma agressiva com alguém, vou associar minha identidade a isso. E essa identificação não nos libera para a transformação”, diz Caroline. E quanto à arrogância e ao egoísmo? Está aí outro paradoxo: um dos momentos em que estamos mais autocentrados é quando nos lamentamos pelas falhas. “Estamos tão focados em nos sentirmos mal que não há espaço para o outro”, afirma Caroline.

Assim como ser duro consigo costuma vir acompanhado de dureza com o outro, ser gentil consigo abre espaço para estendermos o mesmo tratamento às pessoas. Talvez seja essa a maior lição de tudo isso: existe vida após o erro e amor e parceria após as falhas. Sim, você vai estar na média em muitos aspectos. E tudo bem. Quando a voz estiver sendo cruel, podemos lembrá-la disso.

Jeanne Callegari é poeta, escritora, jornalista e já foi editora de Vida Simples. Atualmente, tenta exercitar um diálogo interno mais tranquilo.

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