Ana Michelle Soares era uma garotinha questionadora. Na adolescência, virou “esquisita” para alguns familiares diante de suas perguntas filosóficas sobre a existência. Em algum momento, percebeu que, para parecer normal, uma pessoa tinha que cumprir um determinado script de sucesso, com uma vida perfeita. A garantia de felicidade. Até que o câncer chegou.
Há dez anos, a jornalista AnaMi se viu de volta às suas questões. “Qual o sentido do que fazemos? Por que desperdiçamos tanto tempo? Por que não me sinto boa o suficiente?” Depois do diagnóstico, muitas mudanças: o fim de um casamento abusivo e uma jornada de reencontro consigo. Em seguida, um segundo diagnóstico: metástase.
Hoje, aos 39 anos, a escritora é autora de Enquanto Eu Respirar e Vida Inteira (ambos publicados pela Sextante). “No primeiro livro, falo mais de como era desconfortável viver o tabu de um câncer. Já o segundo escrevi durante a pandemia. Um momento em que todos se viram, de alguma maneira, de frente com algo que eu já vivo: a finitude da vida, a impermanência”, diz.
Além de escritora, ela é coordenadora da Casa Paliativa, que cuida de 1.900 pessoas em sofrimento. Também é palestrante e escreve manuais sobre sua condição para ONGs e empresas. Nesta conversa, AnaMi (@paliativas) reflete sobre, afinal, o que é viver.
“Eu vivo por inteiro. Não porque a minha vida é plena, maravilhosa. Mas porque topo tudo. Topo quimioterapia amanhã, o dia que fico deitada na cama, dia triste, dia com dor, dia feliz, experimentar as coisas, as felicidades… Isso para mim é espiritual. Viver.”
Depois do diagnóstico, a vida ganhou um novo sentido?
Na época em que fui diagnosticada, eu vivia o mesmo fluxo que a maioria das pessoas, em que o sucesso estava atrelado à felicidade. O casamento perfeito, uma viagem internacional, a carreira de sucesso. O diagnóstico me pegou mais na questão de sentido das coisas. E eu tinha um conflito espiritual muito grande porque cresci numa família que tem várias religiões envolvidas. Cada uma me apresentava uma verdade e eu achava estranha a forma como eles se relacionavam com Deus. Quando fui diagnosticada, talvez eu tenha começado a me reencontrar dentro das minhas questões. Observava o que fazia sentido para mim e o quanto era besta essa coisa de sucesso. Eu podia estar morrendo naquele minuto. E nada do que achei que era importante ia me proporcionar um dia a mais de vida. Aí, de repente, vou chegar ao momento de morrer, olhar e falar: “Onde eu me perdi de mim?” Então comecei a tentar me achar dentro daquela realidade que tinha de fazer sentido. Comecei a observar que eu tinha um casamento abusivo. Me separei e comecei a me colocar nas pautas da minha vida de novo. A ser honesta sobre o que fazia sentido sem precisar de validação. Eu não estava feliz e precisava me cuidar. Afinal, a vida acaba. E eu não queria acabar a minha sem descobrir o que é o amor, que não está submetido a pressão psicológica, a mão pesada na mesa que me assustava, a fala sobre eu ser louca, não ser bonita o suficiente, a pessoa ter dó de mim porque tive câncer e ele se sentir um herói porque ficou comigo no período da doença. Comecei a me desligar dessas coisas. Do emprego que eu não era tão feliz, dessa necessidade de ser validada.
E depois, com a metástase?
Eu estava nesse contexto de reconstrução da minha vida quando descobri que estava doente de novo. Na forma metastática, não se fala mais em cura. Aí foi muito mais profundo. Uma realidade de se observar absolutamente mortal. Foi nesse contexto que conheci a Renata, a amiga a quem dedico o meu primeiro livro. A gente se conheceu e queria falar sobre morte porque ela é uma grande professora para a gente olhar para a vida. Pesquisamos sobre cuidados paliativos e encontramos uma enfermeira que cuidava de pacientes terminais, autora de um livro listando os cinco arrependimentos muito comuns nesse momento da vida. Então fizemos uma lista de coisas que a gente queria resolver para chegar a esse capítulo final, olhar para trás e falar: está tudo certo.
Que mudanças você fez depois dessa reflexão?
Me reaproximei de algumas amizades, de pessoas importantes que eu sentia falta. Também comecei a viver de forma mais presente, observando tudo e criando memórias. Para, quando eu não estiver mais aqui, as pessoas lembrarem: “Nossa, naquele dia a gente deu muita risada…”. Quando alguém tem um diagnóstico como o meu, não tem tempo nem para mentir. Comecei a ser honesta com quem eu era, com meus medos e vergonhas. Aí fui encaixando tudo isso para poder estar presente na minha vida. O câncer me trouxe de volta a mim mesma.
As pessoas costumam rotular quem tem câncer como um “guerreiro”. Isso te incomoda?
O que vejo, muitas vezes, é que o paciente perde o direito de ser vulnerável. Porque toda vez que apresenta algum tipo de vulnerabilidade, chegam as pessoas dizendo que ele é um guerreiro. Quando eu era saudável, podia reclamar do trânsito, da vida, do que quisesse. Agora que estou com câncer, perco o direito de reclamar de qualquer coisa. Se eu reclamasse da chuva, alguém me dizia: “Ah! Você tem que agradecer porque a chuva é uma bênção. Olha a sua vida. Você está com câncer”. Então vejo essas metáforas bélicas como algo que tira o direito das pessoas de só serem humanas. Com os pacientes que não têm cura, isso é mais complicado ainda.
Como você leva tudo isso?
Vivo sofrimentos e questões que a maioria das pessoas não vivem. Tem dia que estou jogada na cama, que não tenho condições de andar, de comer. Eu poderia falar só do lado difícil. Mas escolhi que a narrativa da minha vida fosse outra. De aceitar o câncer como parte da vida. É algo que qualquer pessoa pode ter. Cada um tem o seu sofrimento e tudo isso é vida. Se falo que amo a minha vida, não posso descartar o câncer dela porque essa é a realidade. Negar que ele existe não o fará sumir. Então o coloco como parte da minha história. Toda a minha transformação foi uma escolha, de falar: “Ok. As pessoas morrem. Tudo isso aqui acaba. Que história eu vou contar sobre isso? A história de alguém que morreu para uma doença? Morrer significa perder? Então a humanidade está fadada ao fracasso porque todo mundo vai viver essa experiência”. (Fim do conteúdo disponível na revista)
(Início do conteúdo exclusivo online) Eu não coloco o câncer como protagonista disso tudo porque não é. Ele é só um pedaço da minha vida que me põe algumas limitações. Mas dentro dessas limitações, eu escolho olhar o lado bom. No meio do meu dia mais difícil, a minha sobrinha me ligou para falar que me ama. “Ai, dinda, daqui a pouco você vai ficar boa”. Então escolho olhar para esses lados e entender que tudo isso é parte da vida.
Como você fez para enfrentar os desafios e surpresas da doença?
É sempre uma surpresa. A gente nada numa impermanência constante. Vai aprendendo a lidar com ela. Convivo com o câncer há dez anos. Cada hora ele está num lugar e tenho que mudar o tratamento. Não tenho nenhum controle. O câncer ensina a gente que não existe controle. E a gente acaba carregando isso para outras questões na vida. Não fico mais nessa ilusão de que tenho controle sobre alguma coisa, de fazer um plano e depender dele para ser feliz. Faço planos como qualquer pessoa.
Não sei se vou estar viva no ano que vem, nessa mesma época, mas eu planejo. Eu caminho. O futuro pertence a quem caminha.
Continuo caminhando e tentando realizar o que é possível. Não posso controlar a progressão da doença. Há 15 dias, abri um exame que disse que a minha medicação estava falhando e que a doença tinha voltado no meu abdome. Eu estava adaptada aos efeitos colaterais da medicação que estava fazendo. Aí eu vivo o luto, lógico. Tento ser prática. Vamos lá porque desistir não é algo que eu cogite. Nesses últimos 15 dias, vivi um cansaço. Ter que começar tudo de novo, me acostumar ao novo tratamento. Dou aquela sofrida e vivo aquele luto. Chorei 24 horas seguidas pensando em várias coisas. Aí eu levantei e falei. Vamos. Hoje estou no “vamos”. Tento pedir ajuda. Não tenho vergonha nenhuma da minha vulnerabilidade, diante de tudo isso que eu vivo. Talvez por isso eu consiga lidar com essa falta de controle. Vou vivendo o que está acontecendo no momento.
O que era problema para você antes e que agora já não faz mais tanta diferença?
Antes eu tinha muitas cobranças internas de pensar se estava sendo boa o suficiente. Isso me acompanhou por muitos anos. Admirava outras pessoas e me questionava se eu tinha que ser igual a elas para ser boa o suficiente. Sempre tive essa cobrança e isso pra mim sempre foi um grande problema. Quando recebi o meu primeiro diagnóstico, nesse processo do primeiro tratamento, não sabia mais quem eu era, o que queria, porque dependia do meu marido ou do meu pai falarem o que era bom e suficiente. É um sofrimento muito grande quando a gente entra nesse fluxo de não se achar boa o suficiente. Hoje não ligo se alguém está lendo e achando bom ou ruim. Tanto faz pra mim. Cada um vai ler de um jeito.
Tem gente que vai gostar de mim e gente que não vai. Isso diz mais sobre a pessoa do que sobre mim. Então tento só estar em paz.
Fale um pouco sobre a sua experiência na Casa Paliativa.
Tenho formação em cuidados paliativos e lido com pacientes o tempo inteiro. Coordeno uma casa que tem 1900 pessoas que estão em sofrimento, que perderam alguém, que estão doentes, com medo e desistindo. Exerço esse papel de olhar para a pessoa e dizer que ela é boa o suficiente. Isso para mim é cura. O que é cura, no final das contas? É estar em paz, independente da ausência ou não de doença. Conheço tanta gente saudável que está vivendo o que eu vivia antes. Que está presa e infeliz. Que não consegue olhar para a vida e contemplar as coisas porque coloca muitos obstáculos nisso. Olho para mim e falo: “Está tudo certo. Estou com câncer. Essa é a minha realidade. Mas olha o que eu fiz com o que o mundo fez de mim?”. Acho que tenho uma história que vale a pena ser contada. Faço o melhor que posso para ser humanidade. A humanidade é sobre isso. Não viver só em função de si mesmo. É tentar deixar um rastro de algo que faça sentido para outras pessoas também. Isso foi parte do que hoje considero como cura da minha alma. Hoje vivo tudo, não descarto nada. Nem tristeza nem felicidade.
Como é o dia a dia com os pacientes?
Quando comecei a falar sobre câncer avançado, a gente só dava espaço para o paciente que venceu o câncer, embora a gente não saiba exatamente se a pessoa está curada. Só celebrava esse lado do corredor. Ninguém olhava para o fato de que a gente está no Brasil, e que aqui as pessoas têm dificuldade de diagnóstico. Não são cuidadas com o empenho que deveriam ser. É normal que convivam com doenças graves que ameacem a continuidade da vida. E ninguém olhava para elas, era como se não existissem. Eram tidas como as pessoas que perderam para a doença. Pessoas em sofrimento, sem um olhar de compaixão diante da história delas e um ouvido atento para ouvir o que elas têm para falar. É muito comum, no nosso medo, a gente falar: “Vai dar tudo certo, você já venceu”.
A pessoa não pode reclamar porque está viva. Está vivendo um sofrimento e ainda tem que ser a guerreira absoluta e dar conta. É como tirar a possibilidade da gente só ser humano, um ser humano que está vivendo um sofrimento e que só precisa de alguém que olhe para ele e pergunte: “Como eu posso te ajudar?
Isso sempre me causou inquietação. Eu não via sentido nisso e comecei a falar sobre isso abertamente. No começo, as pessoas começaram a ficar desconfortáveis com a minha fala. Quando a gente tenta ultrapassar o desconforto dos outros, a alcança outras pessoas que não tinham a coragem de falar. As pessoas são desassistidas nesse sentido. Elas viram a doença. Deixam de ser seres individuais que têm sofrimentos em várias dimensões e viram “o paciente”, o paciente de fígado. A própria medicina olhava pra gente dessa forma. A gente quase perde a nossa identidade. Tem muita gente sofrendo. No Brasil, as pessoas não morrem de câncer. Morrem de dor. Dor em todas as dimensões. Era muito doloroso ver, ouvir as histórias que a gente ouvia. A gente começou a falar sobre isso e acabou se transformando num ativismo. Tinha um grande tabu se colocar como paciente em cuidados paliativos. As pessoas acham que o paliativo é um remendo, quando não tem mais nada pra fazer, o paciente terminal. Eu não estou terminando nada, mas faço tratamento paliativo porque não tenho possibilidade de cura diante do que a medicina oferece hoje. É só dar nome às coisas. Cuidados paliativos fala de um cuidado que transcende essa parte só biológica. Olha para outros aspectos da vida como suporte emocional, questões existenciais da pessoa. Para o paciente que está dialogando com a finitude, essas questões ficam muito mais latentes. É um cuidado muito mais amplo. Na Casa Paliativa, a gente queria criar esse espaço que só entra paciente que pode se beneficiar dos cuidados paliativos, pessoas que têm o diagnóstico de uma doença grave ou cuidadores diretos. A gente queria que essas pessoas pudessem falar sem medo de ser discriminadas. A gente legitima qualquer sentimento delas. Acompanho alguns pacientes que estão hoje em processo de terminalidade. Vou contar a história de uma menina de 16 anos. Eu estava com ela no último dia da vida dela. Quando a gente foi conversar, ela me disse que estava com medo porque não tinha sido uma boa filha, porque sempre tinha sido rebelde, que ia para as baladas e pichava as coisas. Mostrou o quarto dela. Para mim, era expressão artística, não pichação. Falei para ela: “Dani, não tem nenhum pecado no que você fez. Você era urgente”. Às vezes, com uma palavra a gente salva uma biografia inteira. Ela respondeu: “É verdade. De repente eu já sabia que ia morrer cedo e precisava viver intensamente as coisas”. E ficou em paz. Às vezes, a gente tem medo de estar em contato com as pessoas que estão vivendo o sofrimento. E às vezes elas só precisam de um ouvido, ter alguém que valide suas dores para que consigam se organizar internamente. É esse trabalho que a Casa Paliativa tem feito: ser ouvido e colo. É um movimento muito bonito porque um cuida do outro. A gente está tentando mostrar quanto o ser humano vale a pena. Olhar para o outro e entender que ele é parte nossa também. Somos relação. Quando as pessoas se relacionam com outras e veem que não é só sofrimento delas, que ele existe e que cada um o experimenta de um jeito, é como se uma fosse fonte de cura para a outra. Quando as pessoas expressam a bondade que existe nelas é muito lindo, porque a narrativa da doença muda. Vira uma narrativa de “Olha o que eu fiz com o que essa doença fez de mim”. A gente faz várias aulas, de filosofia, espiritualidade, dor, efeito colateral. Fiz um curso para os pacientes que gostam de dar palestra. O tempo inteiro estamos dando palestra em ligas de medicina porque eles querem ouvir os pacientes. A gente está o tempo todo em eventos, dentro de empresas. Eu, provavelmente, não vou ver o resultado de tudo o que estou fazendo. Provavelmente não estarei viva para isso. Mas só de pensar que talvez a gente esteja plantando algo que no futuro seja colhido, como médicos preparados para lidar com o sofrimento, com pacientes que não se sentem mais essa coisa de “serem a doença”, para mim já terá valido a pena passar por tudo isso.
E a expectativa das pessoas em relação à cura? Como você lida com isso?
É como se só vencesse quem é curado. Ter câncer não é fácil e estou nessa condição há dez anos. São coisas que passo no hospital, a quantidade de vezes que estou dentro de um hospital. É bem difícil. Alguém olha para mim e fala que eu não venci? Isso pra mim é vitória. Estar presente na minha vida, lidando com as coisas que acontecem, independente do que são. No meu caso é câncer. E para mim, sou vitoriosa porque estou de boa aqui, fazendo o meu melhor. Tenho uma lista de 400 coisas que já fiz depois do diagnóstico. Vivi pra caramba. Tenho feito coisas pra caramba. Coisas que muita gente saudável, que se diz vitoriosa, não se deu a oportunidade. Eu e a Renata fizemos muitas coisas doidas, como juntar dinheiro para comer em todos os [restaurantes que tinham] estrela Michelin. As metáforas bélicas acabam atrapalhando a gente no sentido de não sermos validados no que está acontecendo nos nossos sentimentos. E eu realmente questiono o que é vitória para as pessoas. Para mim, alguém que lida com isso, independente do tempo, de estar doente ou não, de “ter vencido”, de ter a possibilidade de cura, é uma grande vitória em vários aspectos. É uma grande vitória lidar com a vida da forma como ela se apresenta.
Na sua opinião, o que é medicina humanizada?
Como sou muito atualizada nos congressos, nos estudos, sei mais ou menos o que os médicos estão fazendo. Em dez anos de tratamento, todas as vezes acertei a medicação que eles iam fazer, sendo uma paciente. Muitos pacientes com os quais eu convivo falam nesse dialeto médico. O futuro é isso. As pessoas estão cada vez mais informadas, conectadas. Acho quase bizarro quando alguém fala que vai praticar uma medicina mais humanizada. Está fazendo o mínimo. O mínimo que a gente espera é que o médico seja humano porque ele está cuidando de gente. Se a gente for buscar a origem de medicina, fala de cuidado.
Para fazer medicina, tem que ser gente que gosta de gente. Os médicos estudam para cuidar de gente e precisam de alguém que os ensine a ser mais humanos? Isso sempre me incomodou.
Falo nas palestras que técnica é o mínimo que a gente espera de um médico, que ele seja perito no que faz. Mas humano, para mim deveria ser o básico, porque somos da mesma espécie. Se fosse um cacto que só espetasse as pessoas, precisaria de humanização. O que a gente espera de um ser humano é que ele olhe para outro ser humano e consiga tratá-lo de maneira individual, com o mínimo de compaixão. Se você escolhe cuidar, inerente ao cuidado está essa questão de ter compaixão pelos outros seres. Espero que a medicina vire o que ela deveria ser desde o começo. Gente cuidando de gente.
O que te levou a escrever Vida Inteira?
Em Enquanto eu respirar (livro anterior), falo mais do começo desse ativismo, de como era desconfortável para mim ter que fingir que não tenho câncer para as pessoas validarem qualquer coisa que eu estava sentindo. Como não tem sentido a gente achar que o câncer é um tabu. Diabetes é tabu? Problemas cardíacos são? Por que só o câncer tem que ter esse estigma de morte se todo mundo vai morrer? No primeiro livro eu queria colocar todo mundo nessa página de a gente realmente aproveitar o tempo que tem com as pessoas, de não ter medo de estar diante do sofrimento de alguém. Escrevi o segundo livro no meio da pandemia. A gente estava vivendo um momento muito simbólico porque estava todo mundo na mesma página que eu. Estava todo mundo vivendo o que vivo o tempo inteiro, que é a impermanência. Todo mundo tinha feito vários planos. De repente, veio algo que não estava sobre o nosso controle. E a gente teve que se trancar em casa, usar máscara. Máscara pra mim já é um lugar muito comum, porque eu já usava por ter um problema de imunidade. Todo mundo estava problematizando coisas que eu já vivia. Pensei: “Acho que sou muito vencedora porque estou dando conta de câncer e as pessoas não estão dando conta de covid”. De repente, as pessoas perceberam que morrem. De repente, a pessoa está do seu ladinho e você deixa de falar para ela aquela coisa. De repente, essa pessoa está intubada e morre. Aí você vai ter que lidar com tudo o que deixou de fazer. Comecei a ver que estava tudo mundo na mesma página da impermanência. Observei o comportamento das pessoas diante disso e senti. Eu estava sozinha em casa e comecei a contar pra mim mesma a minha história, como eu tinha chegado até aquele momento. Percebi que, de repente, tinha algo que poderia ressoar no coração de alguém, de contar da minha vulnerabilidade. A minha busca sempre foi muito espiritual, que não tem nada a ver com religião. Sempre tive dificuldade com religião porque questionava alguns dogmas. Tentei explicar no livro o quanto a gente busca fora o que talvez só encontre dentro. Tentei encontrar dentro de mim algo para preencher esse buraco que eu achava que só ia ser preenchido por uma fórmula mágica externa. Não foi. Conto dessas experiências, dessa loucura em busca de uma cura.
Está todo mundo querendo se curar de alguma coisa, do medo, da falta de inspiração… E a gente só consegue tocar nisso quando olha para dentro e aprende a realmente viver em paz com as coisas que acontecem nas nossas vidas.
Deus para mim é isso, a expressão de todas essas coisas bonitas que encontramos dentro da gente quando nos permitimos olhar de verdade. Vida Inteira é isso. Comecei a escrever num dia que descobri que estava em progressão de doença. Tinha acabado de ter covid e perdido um dos meus amigos mais queridos. Sentei no chão da minha sala e falei: “Deus, não sou o Rambo. Como dou conta de tudo isso ao mesmo tempo?” Sabe quando dá aquele silêncio? Falo que é o silêncio grandioso de Deus. Olhei para aquele silêncio e entendi que vida era tudo aquilo. Como posso falar que amo a vida se fico querendo tirar pedaços dela? Essa é a realidade que se apresenta para mim. Esse momento foi, talvez, a grande catarse da minha vida. Disso nasceu o livro.
Como é a sua relação com a escrita?
Escrever me organiza quando estou com esse fluxo de pensamentos. Escrevo desde pequena. Sempre tive essa coisa inquieta de fazer muitas perguntas e observar muito. Um padre me deu um diário e falou: “Você é muito tímida, mas muito questionadora. Comece a escrever tudo isso que está no seu coração”. Hoje estou mais calma, mas sempre tive muitas inquietações. E quando eu escrevia, parecia que aquilo parava de pertencer só a mim. Virava “o nosso”, mesmo ninguém lendo. Já não era só sobre mim. Olhava para mim, entendia o que estava sentindo e me organizava de novo. Desse jeito escrevi o texto que mais amo, chamado “Eu vivo”. No final, termino: “Eu vivo por inteiro”. Vivo por inteiro não porque a minha vida é plena, maravilhosa. Mas porque topo tudo. Topo quimioterapia amanhã, o dia que fico deitada na cama, dia triste, dia com dor, dia feliz, experimentar as coisas, as felicidades… Isso pra mim é espiritual. Viver.
Há poesia na sua escrita. Você vê o mundo com um olhar poético?
Não ouso falar que é poético porque os poetas que gosto atingiram outro nível de existência, uma profundidade tão grande que eu não sou capaz de atingir ainda. E sou muito fã de poesia. Mas tento ser real no que escrevo. Não consigo olhar para a vida e colocar só uma tinta de Pollyanna. Acho que as pessoas se identificam com o que escrevo porque mesmo naquela dor, tento ver uma poesia. Não essa coisa de métrica. Mas a poesia que vem lá de dentro. De olhar para isso e falar: “Ok”. De ver a realidade dos fatos e falar: “Tá. Estou viva. Eu topo”. A minha poesia é tentar estar presente nas coisas. É ser muito honesta com o que faço. Eu sinto, sinto muito, e tento colocar isso em palavras para que a outra pessoa ache que está tudo bem sentir muito, que ela também sente. É uma lucidez sobre as coisas sem tirar a poesia delas. Tento ver poesia dentro dessa lucidez que o câncer e a morte trazem para a nossa vida.
Você planeja escrever outros livros?
Tenho alguns textos novos, de coisas que fui sentindo nesse último ano. Nesse momento ainda não tenho um novo livro. Estou vivendo o que vou escrever. Provavelmente eu não teria tido a coragem de escrever se não fosse a Renata. Nos últimos dias de vida dela – acabei sendo a cuidadora dela – ela me falou para escrever. Falei que achava que não tinha uma escrita boa o suficiente para um livro. Ela me falou: “Tem sim. Espero que você aprenda a ser como eu te vejo”. E uma das duas precisava morrer pra gente ver como é cuidados paliativos até o fim. Ela falou pra mim: “Que bom que sou eu que estou morrendo, porque você é a escritora. Aí você conta”. Tanto que quando ela morreu, eu vivi o meu processo de luto e escrevi o meu primeiro livro em dois meses. Precisava escrever essa história antes de esquecer algum pedaço. Aí um agente literário leu, uma amiga tinha mandado para ele. E ele me ligou. É incrível as coisas que acontecem quando a gente se permite viver.
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