No hoje da minha infância
"Pouco a pouco, as coisas vão acontecendo. Se você faz o que gosta, uma hora começa a colher frutos que dão novas sementes para novos plantios e novos frutos virão".
Há uma pergunta que toda criança já escutou na vida: “O que você quer ser quando crescer?” Como se ela fosse obrigada a ser alguma coisa ou alguém muito distante do que ela é. Como se ela já não fosse. Como se tivesse que deixar de ser hoje para ser amanhã quando o amanhã é uma hipótese muito distante para ela. Criança só tem hoje.
No hoje da minha infância eu queria ser atriz. Não, na verdade eu queria ser astronauta, marinheira, arqueóloga, médica, dentista, cantora, dançarina, palhaça de circo, turista de disco voador. Eu tinha muitas pessoas dentro de mim e para ser todas elas só mesmo sendo atriz. A única coisa que eu nunca havia pensado em ser era advogada e escritora. E foi justamente o que me tornei quando cresci. Entre idas e vindas, fiz teatro por dez anos. Até que essa coisa de ser quando crescer pesou demais na minha vida e eu resolvi crescer fazendo direito e advogando. Mas a verdade é que isso não estava muito direito no fundo da minha alma.
Eu e a escrita
Comecei a escrever aos nove anos. E foi a música que me levou para a escrita. Eu escrevia música com letra e melodia, tudo junto. Na adolescência descobri Vinicius de Moraes e Drummond. Depois vieram outros poetas. Passei a escrever poesia. Muita poesia! Nos papéis, nos guardanapos dos bares, nas paredes do meu quarto. Mas ainda não me passava pela cabeça ser escritora.
Isso veio muito depois, quando tive meus filhos e lia para eles na hora de dormir, assim como meu pai fazia comigo. Foi ele que me formou leitora com as histórias do Monteiro Lobato e as da revista Recreio. Comecei a ler para os meus filhos quando voltamos da maternidade. Ambos com dois dias de nascidos, cada um no seu tempo de recém-nascido. E nessa leitura noturna passei a inventar histórias e guardar ideias na minha gaveta de importâncias que fica no fundo da caixola.
Um dia o exercício da advocacia começou a doer. Eu trabalhava na área consultiva de um grande fundo de pensão. E aquilo doía. Cada parecer que eu precisava escrever, cada contrato que eu precisava ler doía um tanto. Eu saía de casa todos os dias — deixando a astronauta, a palhaça de circo, a marinheira, a arqueóloga e todas as minhas pessoas do hoje da infância nas histórias que inventava para os meus filhos — para trabalhar numa caixa de sapatos gigante analisando leituras e escrevendo textos sem nenhuma doçura. Então a dor da alma se transformou em dor nas mãos, nos joelhos, nos pés, nos punhos e no corpo todo. Minhas pernas não queriam me levar para aquele trabalho.
Certa manhã, ao chegar na empresa e ligar o computador para escrever um parecer, a mão direita se recusou. Paralisou. Não mexia. Depois de muitas visitas a médicos, descobri uma artrite reumatoide. Fundo emocional. Fui fazer análise e minha primeira sessão foi lendo “Tabacaria”, do Pessoa: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Lia e chorava. Então veio a pergunta do psicanalista lacaniano: “Ser advogada é a única coisa que você pode ser na vida?” Incrédula ao descobrir o que eu sempre soube, mas tive que esquecer para ser, como se eu nunca tivesse sido, disse “não”. A sessão acabou, fui embora para casa e naquele dia escrevi meu primeiro conto para ser publicado.
Passei três anos e meio batendo de porta em porta, de editora em editora para publicar meus livros. Cada editora que me dizia “não” me fazia pensar que era menos uma até que eu chegasse naquela que me diria “sim”. Fui atrás do Ziraldo, que gostou do meu texto e me fez gigante com uma frase que nunca esqueci e que fortaleceu a certeza de que minha escrita valia a pena. Mas essa é outra história…
Eu estava de licença no trabalho e o médico que me tratava, um grande especialista em imunologia no Rio de Janeiro, perguntou se eu queria me aposentar. Eu tinha 37 anos. Pedi alta do INSS, pedi demissão na empresa e larguei tudo pela literatura. Meu primeiro livro foi publicado em 2011.
Criando meu repertório
De lá para cá já são dez títulos e participação em três antologias. Carnavalança e Do Mar (ganhador do selo Altamente Recomendável FNLIJ 2015) foram parar em Bolonha. Entraram para o Catálogo FNLIJ – Bologna Children’s Book Fair. Porco de casa cachorro é ganhou o segundo lugar no prêmio Sylvia Orthof da Biblioteca Nacional 2018 e entrou para o PNLD 2018.
Pouco a pouco as coisas vão acontecendo. Se você faz o que gosta, uma hora começa a colher frutos que dão novas sementes para novos plantios e novos frutos virão. Escrevo para existir com todas as pessoas que existem em mim. Minhas dores sumiram. Descobri que no hoje da minha infância o que eu mais gostava era das histórias. Esse hoje nunca virou ontem, e na escrita descobri que posso ser tudo o que eu quiser.
MIRNA PORTELA largou a advocacia aos 34 anos para se dedicar à literatura. Escritora, roteirista e pesquisadora de literatura, é especializada em Formação do Leitor. Ministra palestras sobre a importância da leitura na constituição do sujeito a partir da primeira infância e trabalha com formação do leitor direcionada para professores e alunos. É autora dos livros Porco de casa cachorro é (Escrita Fina), A viagem da Chama Olímpica (Galocha) e Vou te Contar – 20 histórias ao som de Tom Jobim (Rocco), entre outros.
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