Navegar é preciso, viver também é
Mudar do Rio de Janeiro para Cascais, em Portugal, foi um movimento ancorado na intuição, no sonho, mas também na busca de uma vida melhor e mais simples.
Mudar do Rio de Janeiro para Cascais, em Portugal, foi um movimento ancorado na intuição, no sonho, mas também na busca de uma vida melhor e mais simples.
Minha mãe cruzou o Atlântico aos sete anos e meu pai ainda menor, aos 2. Ela vinha de uma aldeia do norte, chamada Trás-os-Montes e ele de Felgueiras, no distrito do Porto, para desembarcarem na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, depois de quase 20 dias em um navio.
Eu também cruzei os mares, mas fazendo o caminho inverso, quase 65 anos depois.
Sempre me perguntam por que decidi sair do Rio. Se buscar uma resposta racional para satisfazer a curiosidade das pessoas, posso fazer um combinado entre qualidade de vida, busca de uma vida mais simples e uma oportunidade mais ampla de estudo e conhecimento para os meus filhos. Mas, na verdade, eu não sei exatamente por que fiz essa mudança, há quase 3 anos. Mas, tanto antes, quanto agora, continuo sentindo que precisava fazer.
Talvez, a história vista de trás para frente, daqui há alguns anos, me ajude a dar mais sentido a essa travessia que se iniciou em Junho de 2019 e me levou até Cascais, em Portugal.
Vivia no Rio com meus dois filhos, Mariana e Gabriel, de 15 e 12 anos, trabalhava em uma empresa respeitada, tinha um cargo bom, morava em um lugar legal, tinha amigos e uma escola de meditação. Estava tudo certo.
O trânsito, a violência e a rotina acelerada por mais que me incomodassem, já estavam no sangue e faziam parte do meu cenário default. Nunca havia pensado em sair do país. Sou apaixonada pela minha cidade cartão-postal e adoro a mistura do cheiro do mar, com a alegria e o despojamento do povo que vive lá.
Da onde surgiu essa ideia, então?
Há muitos anos, vivia uma sensação de que precisava encontrar algo. Não sabia necessariamente se era uma pessoa, uma experiência ou um lugar, ou a mistura de tudo isso. Por muitos anos, depois da casa se acalmar e colocar as crianças na cama, dava um pulo na varanda, olhava para o céu e me perguntava, como quem quer ouvir uma pista ou resposta das estrelas: onde está isso que eu busco e sinto tanta saudade, mesmo sem conhecer?
Na maior parte das vezes, havia silêncio do lado de fora e dentro de mim. E a vida, seguia. Seguia boa, é preciso salientar. Realmente, não tinha do que reclamar.
Trabalho, meditação, praia, casa dos amigos, cinema e na semana seguinte, o ciclo se repetia, com poucas mudanças. Às vezes, uma escapada para a serra ou para a região dos lagos. Mas a rotina era basicamente essa. Aliás, viajar era uma coisa que sempre me nutria e eu adorava fazer.
E foi assim, que aquela praça em Barcelona apareceu na minha vida.
Estava há quase 3 anos sem férias e a capital da Catalunha parecia o destino perfeito para eu descansar e ao mesmo tempo me jogar. É como se eu sentisse no ar alguma coisa chegando, mas sem saber exatamente o que era.
Andando pela Cidade Velha e o bairro Gótico, olhava atenta à tudo, como quem busca uma resposta no meio das ruelas, das lojinhas e das casas pequenas e escuras de portas entreabertas. Onde estava o que eu tanto procurava?
Sentada em um banco qualquer, em uma pequena praça, da Passeig de Gràcia, olhando para meu tênis surrado, percebi o quanto estava feliz. Sentia-me completamente solta e livre depois de quase 10 dias viajando sozinha. E ali surgiu a semente-ideia de sair do Brasil.
— E se nos mudássemos para fora do país?, pensei. Pensei não, intuí.
E naquele momento a ideia pareceu fazer todo o sentido. Tínhamos passaporte português, não tínhamos a barreira da língua, podia continuar trabalhando parcialmente de forma remota e viver uma rotina menos acelerada, que era tudo o que eu buscava. Mari e Gabriel mudariam de ares e, todos nós, viveríamos uma aventura.
Isso. Era esse movimento que havia começado a sentir, mas que não sabia exatamente explicar.
Segurando firme o leme
Segundo a história, o general romano Pompeu, no século I a.C., costumava encorajar os marinheiros receosos nos mares turbulentos, dizendo: “Navigare necesse, vivere non est necesse (navegar é preciso, viver não é).” Depois de muitos séculos, Fernando Pessoa se apropriou da frase, dizendo “quero para mim o espírito dessa frase”. Eu também quis, mas queria o viver junto. Navegar e viver é o que desejava.
E foi assim, que cinco meses depois daquele insight na praça de Barcelona, chagávamos em Cascais. Com três malas de 23 quilos, mais umas mochilas bem pesadas, nossos três corações pulsavam esperançosos e ansiosos pelo que estava por vir. Éramos o retrato dos desbravadores, que meus pais e avós haviam sido, cruzando o Atlântico em busca de uma nova terra e experiências.
Com um mês de Airbnb pago e apenas uma vaga ideia de como seriam os próximos meses, começamos nossa jornada.
No início, tudo era novidade
Dos supermercados, até o comboio, passando pelos programas de TV e a descoberta da padaria e da farmácia mais próximas, enchemos nossos dois primeiros meses com a organização da rotina. Como chegamos no verão, vivíamos uma espécie de férias.
Passado o momento da excitação inicial, o período letivo trouxe os primeiros desafios e também dias menos ensolarados e mais frios. A ideia romantizada de uma escola pública caiu por terra para os meus dois filhos depois de duas semanas de aula. Apesar do ensino público em Portugal ser de boa qualidade, a estrutura das escolas, dependendo do concelho que você viva, pode deixar muito a desejar. E, Mari e Juba se ressentiram disso. Acostumados a estudar em escolas particulares de primeira linha, foi difícil entenderem que não havia uma enfermaria para irem quando sentiam dor de cabeça ou que precisariam pedir papel higiênico antes de ir ao banheiro.
Estranhezas e adaptação
Minha filha mais velha achava muita coisa um absurdo e, por vezes, acreditava que era “perseguida” por ser brasileira. Cansada e muitas vezes desanimada com o jeito mais formal e menos aberto dos portugueses, também, por vezes, me senti assim no começo.
Mas, o tempo é senhor da vida e vai ajudando a colocar as coisas no lugar. Ainda sem casa e pulando de um Airbnb para outro, precisando me manter forte e convicta da decisão da mudança e tendo que minimizar as “estranhezas” que meus filhos traziam de suas rotinas, as coisas foram lentamente entrando no eixo.
E o primeiro grande passo para que isso acontecesse foi comprar um apartamento.
Até hoje, não sei como pude tomar essa decisão em tão pouco tempo. Desde que havia me separado, há mais de uma década, que buscava um apartamento para comprar. Quantos imóveis vi em Laranjeiras, em Botafogo e até em Florianópolis, mas que não se concretizaram. Por outro lado, bastou apenas poucos meses em Portugal, para aquele T4 (como é chamado em Portugal, um apartamento com uma cozinha, sala e três quartos) iluminado e muito velho, encantar meu coração. Foram três meses de obra prometida, que se estenderam para 6. E no meio disso tudo, chegou a pandemia.
E a necessidade de isolamento. E o frio mais forte.
E o euro disparou. O apartamento que eu havia comprado financiado, havia ficado 40% mais caro de um dia para o outro. E meu salário, trazido do Brasil, 40% menor.E no meio dessa tempestade, eu comecei a tentar entender o que se passava.
Ninguém havia me tirado da minha cidade, do meu trabalho e da minha rotina. Eu é quem havia, com minha própria cabeça e, acreditava, também com meu coração, tomado essa decisão. Havia colocado energia e força para que a transição acontecesse. Fui eu quem havia entrado nesse barco. Não poderia responsabilizar a economia, o Covid ou os oráculos por nada. Euzinha, com minhas próprias pernas tinha me levando para aquela situação.
O que eu tinha que aprender com tudo isso? Perguntava sistematicamente em meditação, todo dia pela manhã. Não era possível estar vivendo aquela situação do nada, sem nenhum propósito. Se alguma lição havia naquilo tudo, eu pedia encarecidamente que se apresentasse.
Mas, nada de concreto aparecia.
Quer dizer, tudo de mais real e importante aparecia, mas quando estamos muito agitados e inquietos, parece que o simples e forte parecem banal e trivial.
Durante muitas semanas, o que me vinha em meditação era: Confia e segue. Navega.
E foi assim, obediente, mas também algumas vezes, vacilante, que procurei viver aqueles meses. Por mais que meu corpo quisesse pular e encontrar uma boia que me levasse para algum lugar que nem eu mesma sabia ao certo, eu mantinha os planos. Acordava, meditava, fazia yoga e sentava em frente ao computador, como quem diz: Vai, apresente-se novas possibilidades! Eu fiz essa mudança pois acreditei que seria o melhor para mim e para meus filhos. Fui corajosa e continuo sendo. Universo, se manifeste e coloque a estrada para eu passar. Eu já dei o primeiro, segundo e terceiro passos, agora, preciso de ajuda. Eu queria avistar a terra firme.
E foram longos 14 meses. Uma volta inteira ao redor do sol.
E eu vivi as quatro estações, coisa que nunca tinha experienciado no Brasil. No Rio, na minha cidade de origem, sempre está quente e calor. E sempre há muita gente e barulho.
Mas, aqui, eu vivi muitos dias de silêncio e também de solidão. Notei o verão se despedindo, as folhas caindo, o cheiro de castanha assada e de lareira chegando e, magicamente, as flores desabrochando e o verão voltando, em um ciclo virtuoso de transmutação, paciência e sabedoria. A natureza do lado de fora, ensinava-me a força da confiança e do tempo, apaziguando tudo do lado de dentro.
Pagando o preço das escolhas e recolhendo seus presentes
Ainda não cheguei em terra firme. Mas também sei que não existe esse lugar do lado de fora. Todos nós vivemos nossas viagens e travessias e será assim até nosso último suspiro. Não é preciso sair do país para se viver uma experiência completamente nova. É possível ter a alma de um viajante e a curiosidade de um andarilho morando na mesma casa, rua e com o mesmo relacionamento há anos.
Cada um tem um caminho, uma rota. Mas a cada dia, tenho mais certeza de que o meu, é aqui. Pelo menos, agora, é. Fico feliz em ter acreditando na minha intuição e mesmo quando os instrumentos de navegação piraram com a pandemia, ter feito uso da sabedoria do céu para me guiar.
Após quase 3 anos, ainda me sinto em transição. Minha vida profissional continua fortemente ancorada no Brasil e a taxa cambial torna tudo ainda muito incerto e desafiante, mas de alguma forma, sinto meus dois pés cada vez mais fincados aqui.
Meus filhos têm amigos e gostam de morar em Portugal. Também aprenderam a gostar da escola e da liberdade e autonomia de viverem em um país seguro. Eu adoro o silêncio e a vida mais calma que encontro na vila de Cascais e quando preciso de uma dose de agitação, dou um pulo em Lisboa. Também gosto de quase nunca pegar transito e de poder fazer muita coisa a pé. Acho lindo a cor do céu e o pinheiro cheio de pinhas que avisto da minha janela.
Por outro lado, sinto falta da música e da alegria do Brasil. E também dos meus amigos e de parte da família que deixei lá. E também do pastel, de todas as frutas tropicais e suculentas e da minha vida profissional mais ativa e pulsante, que ainda não se estabeleceu.
Ônus e bônus de uma escolha madura e consciente.
Mudar de país não é partir. Não precisa ser uma decisão pautada no “ou”. Nisso ou naquilo, mas pode ser escolha que aproxime o “e”. Lembro com alegria da vida que tinha, mas a cada dia, gosto mais daqui. Sinto que não deixei nada para trás, mas sim, que juntei, complementei, agreguei.
Mudar não é fácil, mas pode ser mais simples, quando verdadeiramente nos abrimos para uma nova experiência, sem tantas expectativas ou julgamentos. É comum, a gente subestimar as dificuldades e maximizar os ganhos, colocando mais purpurina no bom que está por vir e tapando os olhos para as dificuldades que vamos encontrar. Mas, com uma boa dose de comprometimento e clareza, a visão vai ficado cada vez mais nítida. O que nos ajuda a continuar navegando e saboreando as experiências do caminho.
Por essas novas águas, fiz grandes amizades e conheci mulheres incríveis, guerreiras e corajosas e que também içaram as velas para velejar por diferentes ventos. Pessoas que certamente não me conectaria se continuasse com a minha rotina. Também conheci um novo e forte amor, que me dá pistas diárias de porque estou e vim para cá.
Ainda não consigo visualizar todo o traçado na cartografia dos meus últimos meses. O traço ainda está em curso e ainda não consigo perceber a direção para onde estou indo. Mas, tenho um porto seguro no meu coração e também uma bússola na minha frente, que diz: continua, navega. E assim, estou. Feliz e com o peito aberto na direção do sol e dos melhores ventos. Grata por essa travessia e desejosa de novos horizontes.
ANA PAULA BORGES é uma andarilha apaixonada pela vida e acredita na intuição para ajudá-la a navegar pelos melhores mares. É instrutora de meditação e fundadora da FlowMind – Mente feliz, em paz e criativa no Agora.
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