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Ácidas águas do mar de mim
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Minhas águas, suas águas, nossos rios. Somos um só oceano, que é a realidade vivida por cada um de nós, todos os dias

Há cinco semanas só como pratos sem açúcar e farinha de trigo. Minha dieta, que já impunha criatividade pela intolerância aos lácteos e a escolha de só me alimentar de animais que me sinto confortável em matar, tornou-se um desafio.

A escolha me foi imposta: no último ano, três longos desarranjos tomaram metade do mês cada. A restrição, que para um padeiro formigão soava a martírio, surpreendeu. E sinto uma energia e disposição de dez anos passados. O sono melhorou, a respiração está mais fluida e até a pele, mais bonita. Soubesse que os benefícios seriam dessa monta teria experimentado antes.

A verdade é que meus saltos de consciência foram a patadas no traseiro. A trombada com a morte me jogou do abismo à minha fantasia de menino: viver a bordo de um veleiro. Parar de beber trouxe as texturas e dimensões de aprendizado dos sonhos noturnos e me reconciliou com a meditação. Um par de semanas no trono trouxe paz ao meu corpo. Observo nossos tempos de falha institucional e me pergunto se o mundo é assim como eu, que precisa de patadas para caminhar.

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Quando me percebo sem ter como acordar deste pesadelo com jeito de filme B e atores baratos como Trumps e Temers, me pergunto de minha própria responsabilidade. Há uma ligação profunda entre cada pensamento, fala, ação e hábito que sustento. A forma como interpreto a realidade ajuda a moldá- -la. Minhas palavras e a intenção que transpira delas estabelecem contextos. Cada um de meus movimentos e escolhas inicia uma sequência de longas e distantes consequências.

A nossa realidade

As narrativas que contamos estabelecem balizas para a imagem comum que construímos no cotidiano. A desconexão dos valores que imaginamos ter e a prática da narrativa que esparramamos é tangível na distopia de nosso dia a dia. Aparece nítida na realidade escabrosa, onde juntos de nossos líderes, ídolos e formadores de opinião encenamos um pacto de mediocridade. Eles fingem nos representar e nós fingimos que participar da sociedade é assinar petições no Facebook. Piada de mau gosto calcada na narrativa de que sucesso é ter, que status e poder são um fim, para o qual não importam os meios.

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Não acredito que somos vítimas da mídia, de indústrias ou de políticos. Escolhemos a cada compra, a cada canal, a cada barbaridade que toleramos. Não é só meu corpo que ia ácido: correm podres nossos rios, acidificam-se nossos mares. Minha água grita por cuidado. Duas gotas, mal se encontram e já são uma. Sua água é uma só, elemento síntese do que nos é comum, o todo. Cada qual é uma rolha que flutua tanto em água cristalina quanto no esgoto. A história que optamos por contar e nossas escolhas fluem para o rio de nossa vida em comum até o grande oceano que é nossa realidade.

Lucas Tauil de Freitas crê que na outra margem há um cotidiano com menos dor e mais acolhimento.

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