Novos caminhos chegam para que a vida se renove. Se olharmos dessa forma, podemos acolhê-los como oportunidades para um novo existir
Os intuitivos farejam a mudança no ar. Um sopro atravessa a fresta da porta ou a ventania retumba nas janelas. A alma estala. O corpo se eletriza. Por último, essas pessoas sabem que é hora de mudar. Daí por diante, ficam mais atentas e disponíveis para os novos movimentos que a vida está lhes pedindo para que continue fresca e fértil. Propícia ao desabrochar.
Contudo, nem sempre esse chamado é claro. Em geral, algo em nós recobre a necessidade de mudança e a tira de vista. É o medo. Mudar dá medo, sim. O desconhecido não tem rosto e esse vazio nos aterroriza. Assim como o risco da falha, da decepção, do fracasso público. Ninguém se sente confortável em errar. E esse pavor pode nos paralisar.
Mas, se tudo está se transformando o tempo todo – como observou o grego Heráclito, é impossível se banhar duas vezes no mesmo rio – então que possamos colaborar com esse processo para que ele seja gentil e enriquecedor. Acima de tudo, esse é o propósito da nossa conversa. Primeiramente, tente se afastar um pouco para enxergar a condição humana com a compaixão que só o distanciamento é capaz de proporcionar.
Tudo se move
Desejamos que as coisas sejam garantidas e permanentes num mundo cuja essência é a mutabilidade. Contudo, ansiamos por terra firme, quando “quer estejamos conscientes ou não, o chão está sempre se movimentando”, nos lembra a monja budista tibetana Pema Chödrön no livro A Beleza da Vida: A Incerteza, a Mudança, a Felicidade (Gryphus).
Entretanto, atento à incongruência que nos habita, Buda observou que a causa do nosso sofrimento não é o assombro perante a impermanência, e sim a resistência à incerteza. Cada músculo do nosso corpo, cada fibra do nosso ser sabe quanta energia empregamos nessa batalha. “Se não encontrarmos um modo de ficar amigos do desenraizamento e da energia sempre mutável da vida, estaremos sempre lutando para encontrar estabilidade num mundo cambiante”, alerta Pema.
Primeiro passo
Assim, a advertência da monja faz pensar como é tentador esperar por garantias para só então dar o primeiro passo. No entanto, essa armadilha pode amarrar os pés por tempo demais. E o que não se move, congela. Por fim, eem movimento, não há mudança e nem renovação. Se percebemos a vida dessa forma, podemos vivê-la com naturalidade.
“Mudar é simplesmente movimentar, é viver experiências de forma a colocar nossa vontade em movimento, assim como o medo e outros sentimentos que estiverem no pacote”, acredita Karina de Paula, psicoterapeuta e criadora do Programa Coragem para Mudar.
Travessia para um novo lugar
Contudo, saber que a resistência ao novo é apenas parte do percurso, não a estrada completa, suaviza as coisas. Também é de grande ajuda lembrar que “nenhum lugar poderá ser amplo para sempre”, como filosofou Nilton Bonder no livro A Alma Imoral (Editora Rocco).
Para ilustrar esse pensamento, ele recorre à passagem bíblica da partida dos hebreus do Egito. Atrás dos fugitivos está a realidade asfixiante do cativeiro; à frente, a vastidão do Mar Vermelho. É para lá que as novas possibilidades do futuro apontam. As outras opções são letais, seja regressar ao Egito, seja ficar acampado na praia, com medo de avançar oceano adentro.
Sabemos bem o que Bonder quer dizer: o que era amplo se torna estreito, porque o ímpeto de crescer tem mais força. Ao longo da vida, fazemos essa travessia incontáveis vezes. O útero materno vira uma bolsa apertada demais para a nossa necessidade de correr mundo. O trabalho, que um dia nos fascinou, deixa de nos desafiar. O relacionamento, que antes nos preenchia, não faz mais nossa alma saltitar. E assim por diante.
Como dizem, a vida é um interminável deixar ir para deixar vir. Ciclos se fechando, outros se abrindo. Numa dança ininterrupta. De repente, um desejo desponta nos lembrando de que estamos vivos, trazendo a reboque a inquietação por um modo de viver mais gratificante. Ou, então, a insatisfação se instala, tudo ao redor desbota e precisamos fazer algo a respeito. É como se a vida nos cutucasse: “Ei, cuidado com o conforto morno das zonas conhecidas. Há muito mais a ser explorado fora daí”.
Preparar para a mudança
Percebe como uma sabedoria misteriosa nos sacode, nos desacomoda, porque entende que a paralisia é contra o pulsar da vida? Ao estudar o encorajamento para a mudança, Karina de Paula notou que a centelha desse processo costuma ser bastante sutil, porém plena de poder. “Nós não nos preparamos para a mudança acontecer. Começamos a reconhecer o movimento que já está aí desde que pensamos em mudar de emprego, de país, de casamento”, diz.
O que de melhor podemos fazer, então, é oferecer espaço para esse desejo. Em seguida, aninhá-lo, aquecê-lo, alimentá-lo. Sabendo que ele não chega sozinho. “Temos de aceitar todos os sentimentos que surgem dessa vontade de se movimentar para outros rumos”, destaca Karina. É assim, segundo ela, que a mudança vai ganhando corpo, se fazendo visível.
Muitas faces
Se você chegou até aqui, é porque, presumo, está interessado em olhar a mudança mais de perto. Quer reconhecer suas faces possíveis. Encará-las com curiosidade. Não mais com medo. É o que vamos fazer agora. A psicanálise coloca o desejo no centro do processo de mudança. Primeiro, reviramos nossas gavetas mais fundas com uma lanterna em punho a fim de identificarmos aquilo que nos vitaliza, e, segundo, partimos, voluntariamente, em busca desse tesouro.
Contudo, mudar algo em nós ou no nosso cotidiano, nesse caso, é um processo criativo e consciente. A vida em nós pedindo mais vida e solicitando nossa participação ativa, o que requer estofo emocional para bancarmos escolhas que podem alterar bastante o nosso jeito de viver e se relacionar.
Ventos do Oriente
No Oriente, por sua vez, a mudança aparece com a roupagem do fogo e da água. Explico. No panteão hindu há Shiva, divindade da transformação. “Ele é o deus da alquimia indiana, porque trabalha com o fogo, elemento transformador”, explica Ruy Alfredo de Bastos Freire, diretor do Centro de Estudos de Yoga Narayana. Shiva nos desafia a ir além das nossas fronteiras cristalizadas, onde teremos condições de explorar nossos potenciais até então adormecidos.
Ele não nos quer restritos, apequenados. Por isso, sua convocação chega com contundência. São aquelas mudanças impostas por rupturas ou perdas. Baques que fazem doer. É preciso arder nas chamas para que o processo alquímico possa se dar, nos iniciando num novo estágio nessa existência, cada vez mais alinhado a quem realmente somos. “Ocorre a quebra do ego para se chegar à essência, ao que é mais verdadeiro em nós”, explica Ruy.
Sapato novo
Sob essa perspectiva, não é possível mudar sem aceitar o desafio de se despojar. Contudo, se topamos passar por um período, sempre indeterminado, de desacomodação, o que implica temporariamente abdicar de certas conveniências ou ilusões, adiante poderemos nos sentir encaixados num cenário mais satisfatório. Sabe aquele processo de lacear o sapato recém-comprado? É exatamente isso.
Assim, de tempos em tempos, vamos ter de amaciar sapatos novos porque o calçado velho e furado já cumpriu sua missão. Permanecer com ele nos pés significa passar apuros
desnecessários. Se não topamos pagar esse preço e desejamos ardentemente uma condição melhor, a mudança pode se concretizar, pois conta com o nosso engajamento.
O fluir da água
Já o Tao – princípio filosófico e espiritual do Taoísmo, que significa “caminho” – compara o ato de mudar ao fluir da água. “Essa tradição chinesa sugere que se conheçam as tendências prevalecentes no momento e se flua com elas”, esclarece Ruy. Assim, ele complementa, não vamos alocar nossa energia em algo desalinhado às inclinações da fase que estamos atravessando.
Por exemplo, se você está num momento mais fragilizado ou sem grande vigor mental ou físico, não é hora de abrir um negócio ou escrever uma tese de doutorado. “É por isso que a água não tem oponentes. Ela segue encontrando os caminhos”, reforça Ruy.
Mais confiança, menos resistência
Assim, a água nos traz uma lição fundamental para a mudança: ela confia na trilha à frente. Trago a confiança à baila porque ela é o antídoto mais eficaz contra o medo de mudar. Onde há confiança, a resistência é menor. Guarde esse lema. É certo que alguns confiam mais, outros menos. O que diz muito sobre o ambiente onde crescemos e as influências que ali absorvemos. “Se, quando bebês, fomos bem recebidos, tivemos nossas necessidades atendidas e constância nos cuidados, aprendemos a ter confiança no meio que nos cerca. Isso reduz o medo das mudanças”, explica Cristiane Marino, médica, psicoterapeuta e consteladora sistêmica.
Se a nossa experiência foi bem diferente dessa, se desde cedo conhecemos a instabilidade e a incerteza, ainda assim podemos desenvolver em nós o estado de confiança na vida. Segundo Cristiane, isso é possível por meio da ressignificação da própria história, que resulta na ampliação do olhar e na libertação de crenças limitantes; pelo fortalecimento espiritual, no sentido de confiar num direcionamento superior, que orienta o nosso desabrochar; ou ainda pela confiança nos próprios recursos internos, que sustentam a superação.
Sempre melhor
Enfim, há muitos jeitos de se recompor e se colocar em marcha, buscando o lugar amplo. “O medo faz parte. Contudo, precisamos ser capazes de olhar além dele e acreditar que a mudança vai resultar em algo melhor, estando cientes de que as coisas não têm de ser perfeitas para serem boas”, ressalta.
Na vida real não existe trajetória contínua-linear-ascendente. Nossa perambulação tem a forma de uma espiral e, nesse percurso, muitas vezes visitamos labirintos, com pausas, dúvidas e inseguranças.
Portanto, paciência, flexibilidade e persistência ajudam a sustentar a travessia do conhecido para o novo. “É preciso se colocar a serviço do processo de transformação, indo em frente, nem que seja um passinho por vez”, orienta Cristiane. Mudanças podem ser conturbadas, e não queremos ser arrastados para o caos.
Exercícios e natureza
Por isso, faz diferença cultivar práticas que firmam o nosso eixo e nos mantêm conectados ao nosso propósito. Aí entra a importância da disciplina. Dela vem a liga necessária para incluirmos no dia a dia exercícios meditativos e corporais, além do contato com a natureza.
Práticas que estimulam o centramento e o enraizamento, reduzindo a ansiedade. “A superação dos desafios trazidos pelo processo de mudança não cai do céu. Ela é fruto do cuidado amoroso conosco”, diz a psicoterapeuta.
Em qualquer idade, mude
A própria Cristiane Marino ouviu o chamado da mudança e injetou novo fôlego à meia-idade. Assim, sinais corporais e subjetivos lhe contaram que era hora de mudar para que um anseio acalentado há anos se concretizasse. “Comecei a observar as mudanças físicas após a menopausa, a encarar o envelhecer e a finitude. Isso nos chama para um sentido, para a realização de coisas importantes para nós”, conta.
Entretanto, foi assim que ela deu vazão ao desejo de se aposentar da prática clínica e se dedicar integralmente ao ensino. Recentemente, inaugurou sua escola de cursos livres, o Círculo do Saber, dedicado ao desenvolvimento pessoal. Sonho da juventude que hoje vitaliza seus dias. Falando desse jeito, parece que foi fácil. Não foi. O longo processo envolveu paciência, flexibilidade, aceitação e confiança na vida.
O que te move?
O que a manteve motivada? A sensação de gratificação por se dedicar a algo que transforma a vida das pessoas. “Isso me moveu para efetuar a mudança, encarando os obstáculos e os imprevistos com leveza e bom humor e me abrindo para esse aprendizado, que é enorme.”
Por fim, seja qual for a sua idade ou o seu momento, espero que você possa redimensionar o medo de mudar. E experimentar a rendição proposta pela monja Pema Chödrön. Ela nos encoraja a nos desprender da margem e nos entregar à correnteza do rio. Soltos como a própria água, ficamos “abertos às ilimitadas possibilidades do que – e quem – pode aparecer”. Sim, mudanças também podem ser inesperadas e incrivelmente agradáveis. Também mudamos pelos encaminhamentos do amor – não só pela dor.
Ainda bem. Nossa disposição de alma nos permite acolher o recado que a mudança vem nos dar. Se estivermos permeáveis o suficiente – com medo, talvez, mas com uma vontade superlativa de nos reinventar – seu assobio atravessará nossas frestas e nós responderemos com naturalidade: “Você é bem-vinda. Pode entrar!”
RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista. Resistiu o quanto pôde até aprender a se entregar às mudanças com curiosidade.
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