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Um guarda-roupa na cidade
Paula Freitas e Unsplash
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O movimento Armário Coletivo estimula a cidadania em espaços públicos e oferece gratuitamente roupas, calçados, livros e outros objetos em bom estado 

Havia um armário no meio do caminho. E neste caminho, alguém teve a vida transformada por um par de sapatos. Outro expandiu horizontes com a leitura de Carlos Drummond de Andrade. E o seguinte conseguiu um paletó para a primeira entrevista de trabalho. Dessa forma, o movimento social Armário Coletivo, criado em Florianópolis (SC), vêm proporcionando trocas e mudanças com propósito na cidade de Florianópolis e em Curitiba. Criado em 2016 pela gaúcha Carina Zagonel, prateleiras e gavetas com roupas, calçados, livros e outros objetos em bom estado de uso ganham novos protagonistas e lares. Atualmente, o projeto já contabiliza, aproximadamente, 300 mil compartilhamentos e ainda se disponibiliza a multiplicar a iniciativa em outras cidades e estados.

“Não é um espaço de reciclagem, mas de compartilhamento. Quando alguém deixa alguma coisa no armário, ela não está doando e sim compartilhando. A ideia é que ele seja para todos, inclusive para aqueles que podem comprar. Pessoas que praticam o consumo consciente também podem pegar e compartilhar”, explica Carina.

Neste ano, o Armário Coletivo também abre uma sede fixa em Florianópolis que funcionará como um espaço maker, equipado com ferramentas e materiais para que as pessoas possam consertar ou arrumar suas peças. Mais uma alternativa para fomentar a perenidade do que se tem, evitando desperdícios.

Nessa entrevista, Carina conta como teve essa ideia e a colocou em prática. E você: já pensou ter um armário coletivo no seu bairro, escola ou empresa?

Como surgiu a ideia para essa intervenção urbana que se tornou um movimento social?Queria encaminhar um par de tênis do meu filho, mas não por uma via tradicional, levando-o até um lugar para ser doado. Então, fiz uma plaquinha: “Deixe aqui o que você não usa mais e pode servir para outros”. Coloquei essa placa na esquina da minha casa e deixei o tênis ali. Sabia que nessa rua passavam muitos meninos e outras pessoas que poderiam reutilizar aquele tênis e que teriam o livre arbítrio de querer ou não calçar aquele tênis usado. Pouco tempo depois, levaram o tênis e, sob a placa, começaram a aparecer muitas coisas: roupas, brinquedos, até um escorredor de louça. As coisas apareciam e sumiam e foi assim durante um ano. Quando vi que o fluxo de coisas continuavam a aparecer, me dei conta de que era uma necessidade das pessoas ter um espaço público para deixarem coisas que não usam mais e que estão em bom estado e podem ser reutilizadas.


Onde podemos encontrar armários coletivos?
Por enquanto, eles estão concentrados na cidade de Florianópolis, onde há um total de 13 armários. E em Curitiba temos mais um. Os armários de Floripa estão nas ruas, em praças e outros espaços públicos, mas também há alguns em universidades, escolas ou mesmo nos parques de tecnologia da cidade. Os lugares privados costumam ser mais “tímidos” para essa ação. As pessoas ainda têm preconceito e acham que se pegarem algo do armário coletivo é porque precisam e não têm dinheiro. Então um dos maiores desafios hoje é fazer com que as pessoas entendam o que é indústria criativa, colaboração, compartilhamento, porque as pessoas estão muito na teoria ainda. O armário coletivo é prático e essa prática ainda é muito desafiadora. Tanto que temos outro desafio: as pessoas usam muito os armários diariamente, mas não cuidam do espaço. Deixam o armário bagunçados, por exemplo.

E quando há alguma peça que não está 100%?
Pensamos nisso. A parte de customização de roupas surgiu com a demanda de peças nos armários. Tinha gente que compartilhava uma camisa linda porque faltava um botão ou havia um detalhe que, claramente, a pessoa não sabia consertar. Então, de forma voluntária, começamos a organizar oficinas de costura em alguns bairros para ensinar as pessoas a costurar, a cuidar das suas roupas e conversar a respeito do que compramos, Coisas para as quais investimos tempo de vida e que não podem ser desperdiçadas porque geraram um impacto ambiental para existir. Então, tudo que a gente tem precisa ser valorizado ao máximo.


Tudo que a gente tem precisa ser valorizado ao máximo

Então, além do compartilhamento, o projeto tenta capacitar outros multiplicadores sobre o consumo consciente?
Viver para comprar coisas, descartar coisas. É insustentável para nosso planeta esse comportamento. A gente já está trabalhando com a logística reversa do próprio armário coletivo porque tem muita sobra de calça jeans. Essas são as peças mais compartilhadas nos armários, então são um material abundante. Por isso estamos nos especializando, através da metodologia da Comas, no upcycling dessas calças. Queremos lançar uma coleção com peças a partir desse jeans. Serão roupas e peças para casa.

Por que ainda é tão difícil dar valor ao que temos em abundância (seja água, roupas, etc)?
Fomos ensinados a viver essa forma linear do consumo e descarte. E quando a gente começa a se dar conta de que tudo, 100% das coisas que a gente leva para dentro da nossa casa um dia vai ter que sair, a gente começa a sentir um certo pânico porque percebemos que nossa vida é uma grande logística de leva e traz. Temos armários dentro das nossas casas porque nos falaram que para ser feliz precisamos ter uma parede inteira de roupeiro cheia de coisas, roupas, mesmo que a gente não use. E isso faz com que a gente se esqueça da quantidade de lixo, de resíduos que entopem as cidades. Aqui em Florianópolis, o projeto Route, de surfistas que fazem limpeza das praias, chegou a retirar 47 pares de sapatos. O que estes sapatos estavam fazendo lá? Que irresponsabilidade é essa que quando não queremos mais uma coisa, a colocamos para fora de casa, como se aquilo deixasse de existir?

E como você aplica o consumo consciente no seu dia a dia?
Minha prática principal é questionar: se preciso de alguma coisa, de que forma posso tê-la antes de pensar em comprar? A palavra comprar vem em último caso no vocabulário. Ela está mais associada a alimentos e coisas que eu realmente preciso. Apesar de plantar alguns alimentos no meu jardim, como temperos, chás e frutas. Roupa eu não compro há quatro anos. E quando preciso de algo muito específico, compro de pequenos negócios locais. Daí, a gente começa a reduzir tudo. Vamos tentando se organizar de forma que nossa vida fique mais simples e com isso tenhamos menos coisa para nos preocupar.


As pessoas ainda têm preconceito e
acham que se pegarem algo do armário
coletivo é porque precisam e não têm dinheiro

Qual o grande sonho do Armário Coletivo?
Nosso sonho é que este modelo ou qualquer outro modelo de compartilhamento seja multiplicado pelo Brasil. Cada um com a sua cara e sua cultura, mas que as pessoas tivessem a atitude de montar esses espaços e cuidar deles. Isso gera uma riqueza, uma abundância absurda que só quem vive perto de um armário coletivo sabe. Imagine passar todo dia por um armário lotado de roupas, de coisas disponíveis para quem quiser, sem burocracia, transformando a cultura da doação. Meu sonho é que as pessoas entendam que todo mundo já comprou tudo e que é só uma questão de logística: tirar uma coisa que não tem valor na sua casa, mas que na minha casa ela passa a ter valor de novo. Das pessoas conversarem, se olharem no olho, serem afetuosas. Deixar uma coisa no armário coletivo é dizer que você também quer que seu vizinho tenha aquilo.

Texto e edição: Maju Duarte | Fotos: Paula Freitas

MANUAL é uma rede que reúne e empodera artesãos contemporâneos e pequenos empreendedores, propiciando ambientes de negócios, conhecimento, conteúdo e entretenimento. São artistas, designers e pequenos produtores que prezam pelo autoria, pelo consumo ético e empreendedorismo criativo. Em Vida Simples, eles compartilham histórias valiosas para inspirar nossos leitores a incentivar e valorizar toda a cultura do feito à mão.

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