Sobre pescar um peixão
Eu nunca pesquei na vida, literalmente. Mas já mergulhei em águas profundas. Não no sentido literal, mas no sentido que Clarice Lispector provoca
Eu nunca pesquei na vida, literalmente. Mas já mergulhei em águas profundas. Não no sentido literal, mas no sentido que Clarice Lispector provoca quando diz: “A vida não está à tona, está em profundezas de mar”. Que profundezas são essas? E a vida, afinal, o que é, diga lá meu irmão? O que é sentir-se vivo, realmente? Cotidianamente? Sentir-se vivo é ter um propósito e agir a partir dele?
Dizem que no altruísmo, quando fazemos o bem para alguém, é que mora a felicidade genuína. E, como refletimos um pouco a partir do que Luciana Pianaro relatou sobre Propósito, este é algo muito além do nosso eu cotidiano e sobrevivente: o propósito está ligado à marca que eu quero deixar no mundo, à diferença que minha existência pode fazer na vida de outra pessoa. Ao que fica de mim depois que eu me for, concluí. O meu legado para os outros. O que construí, o que ajudei a transformar para melhor, o que fui, com o que convivi.
Isso, imagino, é para quem tem coragem de mergulhar nas águas profundas das mais diversas experiências e voltar à tona com algo novo. É quem lança-se à aventura do autoconhecimento, e desenvolve-se a partir dele.
Há dois anos, uns amigos e eu decidimos nos hospedar em um veleiro e passar o final de semana no mar. Nenhum de nós havia passado por essa experiência antes, éramos literalmente marinheiros de primeira viagem. Em nossa primeira noite, quando já estávamos todos dormindo – e após termos visto as estrelas, bebido vinho e filosofado sobre a vida – fomos surpreendentemente acordados pelos balanços da embarcação, em consequência de uma tempestade.
A chuva e o vento fortes naquela madrugada me fizeram chorar de medo, fazendo-me acreditar que a embarcação certamente viraria. O que me acalmou naquele momento foi a certeza de que o barco estava encorado, trazendo-me a confiança de que não nos perderíamos em alto mar. A chuva deu uma trégua, nos acalmamos e voltamos a dormir, sendo ninados pelo balanço do mar. Que noite!
Pescando um peixão ou um peixinho
Durante a vida, nos apegamos às nossas certezas, zonas de conforto e tudo aquilo que nos traz segurança. Porém, como já dizia o diretor de cinema David Linch “Se quiser pescar um peixinho, fique em águas rasas, mas se quiser pescar um peixão, você tem que mergulhar em águas profundas”. Assim, podemos fazer tal analogia, onde o mar é nosso inconsciente e os peixes são nossas descobertas ao longo do processo: é preciso ir fundo, se quiser encontrar algo grande!
O que faz-me lembrar da trajetória do herói, da qual nos fala Joseph Campbell em “O Poder do Mito”. Herói é aquele que percorre o caminho primeiro, e mostra como é que se faz. Mostra que é possível. O propósito de sua vida inicia-se com sua vontade e desejo de percorrer aquela trilha, abrir uma nova possibilidade, viver melhor, derrotar algum perigo. E sua conquista sempre é porta para outros passarem e também usufruírem dela.
“Meu caminho é o outro. Mas primeiro preciso tocar em mim mesma. Primeiro preciso tocar o mundo”, outra vez Clarice relembrando-nos que o caminho da ação que se volta para o outro começa sempre dentro da gente.
Ana Holanda, que fez-me chorar quando disse que a escrita afetiva é a que nos afeta, nos atravessa e sempre, sempre, sempre parte de nós. Então percebemos que é só quando falamos a partir de nossa verdade mais profunda que podemos tocar o outro, de fato, e inspirá-lo. Se formos tocados primeiro. Só quando eu já percorri um caminho de amor próprio, por exemplo, posso inspirar outros a também fazê-lo.
Às vezes, como também refletimos nessa jornada do autoconhecimento, um mapa pode ser a retomada do que gostávamos e o que fazia sentido para nós na nossa infância. A pista de quem somos sempre esteve ali, nesse lugar-memória de um tempo onde tudo era possível…
Profundidade das águas
Mas voltando à experiência marítima, que aqui já se tornou metáfora. Há algo dentro de nós que nos chama a soltar nossas amarras e nos lançarmos ao mar. Somos chamados a nos conhecermos, a entender quem realmente somos, identificando nossos erros, medos, valores e fortalezas, e isso não se faz velejando em águas rasas, é preciso ir fundo, é preciso se perder para então descobrir realmente quem somos, na maioria das vezes.
No dia seguinte à experiência assustadora que tivemos no veleiro, puxamos a âncora e seguimos em mar aberto. Visitamos praias, vimos o azul brilhante da água, avistamos grandes peixes e vimos um lindo pôr-do-sol. Mas não pense que deixamos de sentir medo de nos perdermos, ele sempre esteve ali. Porém, percebemos que para viver todas essas experiências maravilhosas, era preciso calcular os riscos, enfrentar nossos medos e seguir viagem. A experiência nos fortaleceu e percebemos que gostamos de paisagens lindas, mesmo que tenhamos que abrir um caminho até elas.
Durante a vida toda acredito que temos a oportunidade de viver essa metáfora marítima: na tomada de uma decisão importante, como se casar, na escolha ou mudança de profissão, de lugar onde mora, cidade, país, ou até mesmo no jeito de se vestir, que vem a partir do encontro muito profundo conosco em mares tempestuosos e longínquos. O que de fato é nossa escolha e o que optamos para agradar os outros. Lembrando que, como vimos, se não partirmos de nossa verdade nada fará sentido e nada agradará ninguém, seja um texto ou um projeto de vida!
Pescando ideias
“A pior pergunta que um ser-humano pode se fazer é ‘quem sou eu’”. Cito Lispector novamente para nos lembrar que estamos em terreno perigoso. Mas, como ela mesma mostra em sua obra inteira, só quem se conhece é capaz de ser! Ser o quê? Ser, sentir, viver. E aqui ouso ir ainda mais fundo: ser (pleno, inteiro, amoroso consigo e com o outro), conviver (em harmonia consigo, com os outros seres e o planeta) e transformar (o mundo e a vida dos outros em um lugar melhor).
Como disse uma amiga “Eu tenho uma mente borbulhante, com mil ideias e querendo realizar diversos projetos ao mesmo tempo, mas sem conseguir focar as energias naquilo que é mais importante, ou que tem mais a ver consigo mesma, porque não sei o que é.”
Então, caro companheiro de jornada, recolha sua âncora, ela só o manterá no mesmo lugar. Permita-se à bem-aventurança de uma jornada em mar aberto. A paisagem que vale a pena o está aguardando após as ondas furiosas.
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