Farmacinha literária: corações partidos
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento da memória, ainda haveremos de recordar aquela tarde remota em que tivemos o coração partido.
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento da memória, ainda haveremos de recordar aquela tarde remota em que tivemos o coração partido.
Talvez, se espremermos um pouco mais a lembrança, consigamos sentir o gosto da desilusão na boca. Aquela sensação de tristeza profunda. Aparentemente nos encontramos todos nessa experiência comum. Ter o coração estilhaçado parece ser condição sine qua non para podermos confessar que, sim, vivemos. A expressão — metafórica, claro —, já é, em si, uma experimentação dilacerante do acontecimento. Tente dizê-la em voz alta. É quase coisa de sentir de novo a fisgada no peito. Isso porque a perda machuca tanto ao ponto de que sintamos no corpo, como se o centro dos nossos afetos estivesse rompido. O coração não se parte, de fato — embora o desencadeamento emocional possa mesmo afetar o órgão —, mas é como se.
Não tem remédio que faça a dor emocional desaparecer. Porém há duas ferramentas que ajudam um bocado: uma rede consistente de apoio, que esteja lá para segurar você e acolher sua dor. E acompanhamento psicológico, para que você consiga elaborar a perda e atravessá-la. Adiciono, de brinde, mais um remédio homeopático: literatura. Esse misterioso atravessamento da linguagem que faz com que o autor possa colocar seu leitor no divã. Que faz com que realoquemos afetos e que possamos, quem sabe, decifrar um pouco mais de nós mesmos.
Nossos espelhos
E nem Freud resistiu aos misteriosos encantos literários. Em correspondência com o escritor vienense Arthur Schnitzler, confessa: “Acho que evitei o senhor por causa de uma espécie de relutância em conhecer o meu sósia. Não que eu me incline facilmente a identificar-me com outrem. Ou que pretenda fazer pouco da diferença de talento que me separa do senhor. Mas todas as vezes que me absorvo profundamente nas suas belas citações, pareço sempre encontrar sob uma superfície poética, os mesmo pressupostos, interesses e conclusões que alimento”.
Pode acontecer com qualquer um. Ao virarmos as páginas de um livro, recebemos cada narrativa como espelhos ou lentes de aumento. Nossos horizontes se expandem, colocamos situações em perspectiva, abrimos portas e janelas para novos possíveis. Não há, na indicação de leitura, bula ou modos de usar. Mas deixo aqui minhas receitas. A começar pelo livro Guia do Coração Partido: conselhos budistas para as dores de amor (Editora Lúcida Letra). Não sou adepta do sistema filosófico, mas acredito piamente que, vez que outra, o óbvio precisa ser (lido e) dito.
É o que faz com maestria Lodro Rinzler neste livro pequenino em tamanho, mas enorme em benesses. Você pode navegá-lo livremente ou, então, consultar o sumário e encontrar a dor manifesta naquele momento. — Se você se sente rejeitado. — Se você acha que não consegue comer . — Se você se sente traído . Se você está a fim de contatar aquela pessoa… São mais de trinta possibilidades, além de convites à reflexão e exercícios práticos. É um ótimo companheiro para quem teve o coração dilacerado ou um bom presente para pessoas queridas que estão passando por isso.
Sempre a poesia
E como sabemos que um coração que se parte não impõe protocolos, para momentos de dor aguda, daqueles que o simples virar de página é atividade hercúlea: poesia. De preferência, de Ana Martins Marquez. Se for A Vida Submarina (Companhia das Letras), então, nem se fala. Escolha acertadíssima.
“Algumas coisas / quando se quebram / são fáceis de consertar:
uma xícara lascada / uma estatueta de gesso / um sapato velho
uma receita que desanda / ou uma amizade arruinada.
Ainda que guardem / as marcas do remendo,
é possível que essas marcas / tenham um certo charme / como algumas cicatrizes.
Mas experimente consertar / um poema que estragou.”
— Reparos, de Ana Martins Marques
Coração partido
Não há nada no mundo que nos dê a garantia que nossos corações não serão afetados, de novo, pelos desencantamentos da vida. Aqui, falo de desilusões amorosas. Contudo, temos também nosso coração partido por todo tipo de acontecimento: lutos, decepções profissionais, expectativas frustradas das mais diversas. É por isso que fecho esta carta com uma última indicação. A crônica Para Maria das Graças — e também o livro O amor Acaba (Companhia das Letras), de Paulo Mendes Campos.
“Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano.” Queiramos ou não, tem vezes que o imprevisível é um ceifador daqueles, sabemos, mas também abre espaço para o novo. Temos, na caixa torácica, um órgão feito de uma espécie de músculo estriado despreparado que ainda não foi decifrado por ciência alguma. Por isso dói. Quanto mais rígidos estivermos ao oscilar da vida, maiores os danos causados pelo impacto da queda. Portanto, felizes aqueles que, descontraídos, colaboram com o inevitável.
Porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra. Mas nós temos.
Agradecimento especial a Gabriel García Marquez, de quem tomo de empréstimo o começo e o fim de Cem anos de solidão e parafraseio nesta estreia, posto que não há nada que sirva tão bem de cola para um coração partido que um excelente romance.
GABRIELLE ESTEVANS é jornalista e psicanalista. Escreve sobre política, gênero, literatura e é fundadora da CASA, editora independente para mulheres escritoras.
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