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Uma taça de vida e a importância dos pequenos rituais
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Ritualizar os pequenos momentos do cotidiano nos ajuda a celebrar essa existência com mais presença e afeto.


***Este texto foi originalmente publicado na edição 232 da revista impressa Vida Simples

Herdei dos meus pais um conjunto de taças de champanhe azuis de cristal, daquelas bem rasas. Beber nelas é como carregar água na peneira: se perde a compostura, o líquido transborda. Nas fotos do casamento civil, nos anos 1960, eles brindam com taças semelhantes, e me agrada o sabor das imagens em preto e branco. Mas não me lembro de ver meus pais brindando em casa com as taças.

Elas viveram em quarentena no armário até meus vinte e poucos anos. Meus pais se foram cedo, as taças ficaram. Coube à minha cristaleira guardá-las na orfandade (minha ou delas?). Estreamos num dos almoços que o pai do meu filho adorava preparar. Em casa, enquanto ele passava os sábados cozinhando para os amigos, eu me encarregava do arroz. Mas vinha dele o requinte: servia os pratos um a um, usando uma das taças para deixar o arroz em formato de concha, que decorava com sementes de papoula.

Cada convidado tomava nas mãos um esboço de Niemeyer.

Preenchendo os dias com deliciosas inutilidades, ele sabia tornar eternos os momentos ternos. No primeiro café da manhã que me serviu, as torradas vinham cortadas em lascas, arrumadas como fogueira prestes a ser acesa. Sua partida precoce deixou como lição a sabedoria de manter a chama nos dias comuns. Meu filho não teve tempo de conhecer o pai, mas tomou gosto pela gastronomia. Costumo assistir a cenas que parecem lembranças.

Outro dia, quando ele preparava um peixe para levar ao forno, flagrei o capricho dos seus dedos posicionando os tomates abaixo das postas, com uma paciência que ele não costuma ter na vida. Repete o pai com maestria, adicionando uma boa pitada de si mesmo.

Esse tempo em casa apurou os meus sentidos de viver. Meu velho amor pelas caixas, herdado da avó materna, atravessou a genética até a outra via. Passei uma tarde de terça-feira recortando imagens em revistas de moda para redecorar velhas caixas. Bordada por antepassados, me vi indecisa entre o pragmatismo e o sonho, que não pretendem mais viver separados. Em tempos de raro oxigênio, bordar a vida é ioga.

A tarde pede pausa, o café pede xícara rebuscada, o prato merece porcelana branca. Viver virou ritual. Do meu velho autorretrato, “mulher equilibrando pratos com varas”, faço cena em movimento. Disponho os pratos um a um sobre a mesa vestida de renda, distribuo as taças de cristal e coloco a família em torno. É hora do chá.


CRIS GUERRA é autora de seis livros, palestrante e acaba de lançar o podcast 50 Crises. Nas redes, traz seus olhares sobre a vida.

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