Uma biblioteca na minha vida
O amor pelos livros, as nossas primeiras aquisiçoes e a biblioteca que formamos acompanham as nossas memórias e fazem parte da nossa história.
O amor pelos livros, as nossas primeiras aquisiçoes e a biblioteca que formamos acompanham as nossas memórias e fazem parte da nossa história.
Na minha cidade natal, Araraquara, lá pelos anos 1960, não se percebia a existência da classe média. Ou a pessoa era rica ou pobre. Não se notava tristeza nos menos afortunados. Viviam com o que tinham, sem se incomodar com os mais aquinhoados, que, aliás, eram poucos. Pouquíssimos.
No bairro em que eu morava, por exemplo, em quase todas as famílias o provedor era o pai. As proles eram numerosas, chegando em alguns casos a dez filhos. Esses chefes de família eram verdadeiros heróis. A maioria trabalhava nas oficinas da Estrada de Ferro. O salário era bastante reduzido.
Só para dar uma ideia da dureza, em alguns casos os irmãos estudavam em períodos diferentes para que um pudesse usar uniforme, sapato e material escolar do outro.
TV coletiva
Em sua maioria, as casas possuíam grandes quintais. Ali se plantavam todos os tipos de legumes e verduras. Também criavam galinhas e porcos. Por isso, as despesas com alimentação se limitavam à compra de arroz, feijão, batatas, bananas e mais um ou outro produto. Até o sabão era feito em casa. Um ou outro possuía aparelho de TV. Na hora da novela, a vizinhança, cada um levando sua própria cadeira, se dirigia para lá. Era o programa da noite.
E quem gostava de ler? Como comprar livros se ninguém tinha dinheiro? Era o meu caso. Para ganhar uns trocados, encontrei uma solução: um amigo que morava na rua paralela a minha selecionava alguns legumes, como chuchu e abobrinha, para eu vender de porta em porta. Nem preciso dizer que a receita era mínima. E tudo o que eu ganhava gastava com livros. Como era novinho, tinha apenas 12 ou 13 anos, dava preferência às edições condensadas de obras clássicas publicadas pela Melhoramentos.
Primeira biblioteca
Cada compra era uma realização. Começava a ler ainda na rua, e, depois, sentado na soleira da porta da cozinha, devorava cada página. As aquisições se transformavam em conquistas tão valiosas que nunca descartei essas obras. Tenho todas até hoje. De vez em quando, folheio alguns desses livros. É como se pudesse voltar no tempo e sentir aquelas mesmas emoções.
Para poder ler ainda mais recorri à biblioteca. Eu me tornei assíduo frequentador. Mas acabei arrumando problema. Como me envolvia muito com as histórias que lia, demorava para devolver os livros. Não era por maldade. Só queria reler alguns capítulos que me chamavam mais a atenção.
Resgatar o livro
Nesse momento entrava em ação uma pessoa que foi muito marcante em minha vida, o velho e simpático Bonavina. Alguns dias depois da data do vencimento do empréstimo, cabia a ele resgatar o livro.
Com sua inseparável bicicleta, ia até a minha casa, conversava um pouco comigo e pedia a obra de volta. Sempre sorridente, nunca me repreendeu, nunca reclamou, nem cobrou um centavo de multa. Dava a impressão de entender bem o meu amor pela leitura. E por julgar que ninguém saía prejudicado com os atrasos da devolução, perdoava aquelas minhas infrações tão ingênuas.
Depois de ter se dedicado a vida toda cuidando dos livros da Biblioteca Municipal Mário de Andrade de Araraquara, Bonavina se aposentou. Só o reencontrei depois de mais de 30 anos tomando uma cervejinha e conversando com amigos em um bar no Jardim Primavera, pertinho de sua casa. Foi um encontro emocionante para mim. Recordamos dos tempos em que ele fazia o resgate dos livros. Bonavina me ouviu com o mesmo sorriso simpático de sempre.
Dívida de livros
Essa história de não ter sido pontual nas devoluções das obras, porém, sempre me fizeram sentir como se fosse devedor. Fiquei contente, por isso, quando encontrei uma forma de, pelo menos em parte, pagar a minha antiga dívida. Certa vez, ao visitar a biblioteca, enquanto bisbilhotava as prateleiras, para minha surpresa, encontrei alguns livros de minha autoria com várias fichas de retiradas preenchidas.
Como os meus livros eram procurados, bem que eu poderia fazer a doação de alguns títulos. Fui recebido com muita atenção e amabilidade por todos. Enquanto eu autografava os exemplares, comentei sobre a minha história com o Bonavina. Para minha grande tristeza, fiquei sabendo que ele havia falecido. Queria tanto contar ao meu “cúmplice” que, de certa forma, eu estava compensando meu débito com a doação que acabara de fazer.
Não tenho dúvida de que, se ele ainda estivesse vivo, me acolheria com o mesmo sorriso maroto e cochicharia só para eu ouvir: Quem diria que um dia você traria sozinho livros para a biblioteca, sem que eu precisasse correr atrás com a minha bicicleta!
REINALDO POLITO é mestre em Ciências da Comunicação, palestrante, professor nos cursos de pós-graduação em Marketing Político e Gestão Corporativa na ECA-USP e autor de 34 livros que já venderam 1,5 milhão de exemplares em 39 países. Sua obra mais recente é“Os Segredos da Boa Comunicação no Mundo Corporativo”.
*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login