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O preço da pressa que não compensa
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A correria diária muitas vezes torna-se literal para algumas pessoas. Correr, no entanto, pode ser um ato arriscado. Didier Ferreira nos apresenta, a seguir, um conto sobre pressa e sobre escolhas. 

Perdi o autocarro. Pronto. Paciência. Recordo sempre nestes casos a voz do meu pai, dizendo repetidamente,

— mais vale perder um minuto na vida do que a vida num minuto,

para me justificar em face da inércia que me toma e impede de correr atrás ou de me afligir sobre o que já não poderei mudar.

Perdi o autocarro. Pronto. Que fazer se não esperar por outro? Até porque cinco, dez, quinze minutos, pouco ou nada representam na vida quotidiana do ser humano. Na minha, de todo que nada representam.

Passei a conformar-me com as minhas sucessivas perdas de tempo nas paragens de autocarros, em estações de metro ou de comboios, convertendo-as num ganho para mim em prol da leitura. Como hoje. Perdido o transporte, sento-me no banco, sozinho, e, em silêncio, pouso a mochila ao meu lado, abro o fecho, retiro do interior “O livro de Cesário Verde” e um lápis. Aproveito o tempo para ler.

Leio, preenchendo de notas os espaços em torno dos versos e das estrofes. Dez da manhã; os transparentes / Matizam uma casa apalaçada. Pauso a leitura. Penso. Quem são os transparentes? Ou, o que são transparentes? Percebo que se trata de um agente. Algo ou alguém matiza uma casa. Abro o dicionário no motor de busca da internet usando o telemóvel. Procuro os significados das palavras transparentes e matizar. Olho para a folha. Surge-me vibrante o título do poema. “Num bairro moderno”. Ocorre-me então que os transparentes serão os trabalhadores, pessoas invisíveis ignoradas pela opulência da casa apalaçada. Só que, julgando-me certo da resposta à questão, quem são os transparentes, raios de sol surgem no horizonte, embatem diretamente no caixote do lixo ao meu lado e eu descubro neles uma potencial resposta. Serão os transparentes raios de sol que, com o seu brilho, matizam a casa? São dez da manhã, no poema. Aqui são oito e cinquenta e quatro e o autocarro já deveria cá estar há quatro minutos. Está atrasado.

Inquietações

Uma vez dentro do veículo, sentado, calculo com precisão o tempo que demorarei até chegar ao emprego. Face ao atraso, perderei o próximo comboio. Apanharei então o seguinte, daqui a vinte minutos. Pouso, agora sim, o livro de Cesário Verde sobre as pernas, pego no telemóvel, escrevo: “Bom dia, Ricardo. Estou com um atraso de meia hora, aproximadamente. Importas-te de orientar a minha turma para a sala e de lhes distribuir uma ficha de exercícios que te enviarei por e-mail?”. A resposta: “Bom dia, Didier. Não te preocupes. Eu trato disso. Vá, até já”, tranquiliza-me sobremaneira. Porém, outra situação inquieta-me. E de que maneira.

Do meu lado esquerdo, pelo vidro do autocarro onde estou, vejo três mulheres pretas e uma branca correndo desenfreadamente, perdendo o fôlego de exaustão, desesperadas para apanhar este autocarro que se aproxima da paragem ali à frente. Elas correm como podem, atrapalhadas com as bolsas e os sacos que trazem consigo, à margem da via de rodagem com um total de quatro faixas divididas por um separador central de sebes baixas. Correm, como se tivessem mesmo de apanhar este transporte e nenhum outro, como se não existissem alternativas de transporte ou cinco, dez, quinze minutos de atraso para onde quer que vão, lhes fosse totalmente imperdoável.

Vejo, apreensivo, como procuram um espaço temporal entre os carros e ao mesmo tempo uma brecha entre as sebes para atravessarem para este lado da estrada. O autocarro está parado na passadeira. Um grupo de pessoas passa tranquilamente. Mas elas, num esforço hercúleo de pernas e resistência, persistem na corrida. “Esperança?”, questiono-me. Querem muito entrar neste veículo. Hão de o conseguir, tal é a determinação com que se movem. E eu, observando-as à distância, recordo as mulheres pretas que às oito e meia, oito e quarenta e cinco da manhã, saíam disparadas a correr das portas traseiras das faculdades do campus universitário em direção ao Metropolitano. A mesma correria todos os dias, enquanto eu, na altura, sonolento, arrastava os pés para o edifício totalmente limpo. Até às nove da manhã.

Eram mulheres como estas. Mães, parece-me certo, que deixam ainda na cama os filhos para se apresentarem em lugares sujos, necessitados de higienização. Começam às cinco e às seis da manhã o primeiro trabalho para depois, apressadas, se apresentarem no segundo; quando não há um terceiro até depois da hora do jantar. Mulheres como estas que arriscam a própria vida; no mínimo, a integridade física, tal como assisto neste preciso instante em que um carro trava bruscamente, quase deitando ao chão uma delas. Quase atropelada. A troco de um minuto. Um minuto bastar-lhes-ia para entrarem neste autocarro. Um minuto mais.

Mas o motorista fecha as portas. Elas ficam para trás. Arranca. Ouvem-se o estrondo e as vozes gritando. Trava. O bater forte das mãos no chassi precipita os passageiros num movimento brusco de olhar para trás. São elas, berrando,

— espera, espera só, faz favor,

tão alto que ouvimos perfeitamente os rogos cá dentro. O motorista mira-as pelo espelho retrovisor. Não acreditei que fosse possível as mulheres ainda nos alcançarem. “Conseguiram”, penso. E tenho em mim uma súbita alegria, uma felicidade enorme crescendo da admiração que nutro já empaticamente por elas, correndo levemente ao ritmo do autocarro, ainda ao alcance da porta traseira, correndo e gritando

— faz só favor abrir a porta,

enquanto o motorista olha para a frente e, assim parece-me, lança um olhar discreto ao retrovisor, elas reduzidas em tamanho, mais pequenas, mais para trás, mais distantes.

Indiferença

Uma senhora, sentada aproximadamente a meio do veículo, fala ao motorista, como acredito que muitos mais o desejassem fazer, diz, bem alto,

— o quê que lhe custava deixar aquelas coitadas entrarem? Meu deus, tanta indiferença!

E ele, o motorista, respondeu com voz sumida,

— já estávamos fora da paragem… não posso abrir… é que se sou apanhado, eu é que pago a multa…

“É sempre uma questão de dinheiro”, penso, abanando a cabeça para os lados. Seguimos viagem. E eu solidarizo-me com Cesário Verde neste poema, porque há coisas que

Nas nossas ruas simplesmente

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

LEIA O CONTO ANTERIOR: Sobre atrasos, imprevistos e uma pitada de mau humor


Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:

autocarro: ônibus

paragens: ponto de ônibus, parada

metro: forma abreviada de Metropolitano (o metrô português)

comboios: trem

telemóvel: celular

sebes: divisórias feitas de vegetação

rogos: súplicas

Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples


DIDIER FERREIRA (@didier.ferreira) é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios e autor de Nada Faz Sentido (Associação Poetas Almadenses) e O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos).

*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.

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