“Neste momento sinto que ganhei o dia”
Na coluna desta semana, o escritor português Didier Ferreira traz para o público de Vida Simples a bela história de um encontro fortuito, possível graças a um acaso meteorológico.
Chove torrencialmente. Melhor. Chovia, porque agora já não tanto. O tempo meteorológico começa a dar tréguas e o céu abranda a sua fúria enquanto eu hesito se saio, se adio, se desisto. Detesto andar à chuva. Odeio os sapatos encharcados e, no interior, a sensação dos pés molhados, meias escorregadias, dedos frios. Detesto os dias de chuva, única e exclusivamente quando me apanha fora de casa, pior ainda se me apanhar desprevenido.
Convenci-me a ficar por casa. Engendro razões para me desculpar no trabalho, porque
— acontecimentos súbitos e inusitados me impediram de sair,
direi. Estava à janela, contemplando o horizonte perdido, quando uma sensação de arrependimento me tomou de assalto a consciência, vibrou cada vez mais forte dentro de mim, e coincidiu, por incrível que pareça, com o vislumbre gradual do asfalto brilhante, do muro cinza, das árvores castanhas, verdes, altíssimas, por detrás da cerca do Instituto Português da Qualidade. A chuva abrandava e a neblina era então menos densa. Sinto agora um grande desconforto. E voz — será este o tom da razão? — sussurra-me “vai” tão persistentemente quanto desejo ficar.
O inusitado acontece
Impressionam-me sempre estas súbitas alterações atmosféricas quando tomo uma decisão. Chovia torrencialmente, tinha uma boa justificação — “uma mentira”, como me diz a razão — para não sair de casa. Estava pronto para me esticar no sofá, passar a manhã a ler, a tarde entretido com uma série. O aquecedor sempre ligado. Mas o tempo é um ser incontrolável. Parou de chover. Pesa-me a consciência por permanecer aqui parado, de olhos postos na rua, fixado na mulher de guarda-chuva aberto aproximando-se dos contentores do lixo.
Visto, portanto, o sobretudo, calço os sapatos, pego nas chaves, ponho-as no bolso e saio. Nas escadas confirmo o telemóvel e a carteira. Ajeito a gravata. Imagino luz e sol resplandecentes sobre mim. Um tempo ameno. Estou pronto. Nas escadas. Chego ao hall de entrada do prédio quase ao mesmo tempo que a minha vizinha aparece do outro lado da porta. Dou um passo, dois passos, mais outro. Lanço a mão apressadamente à maçaneta. Abro-a. Ela tem o filho, o guarda-chuva e um saco de compras pendurados sobre o braço e o pulso direito. Todos a pingar água. E só então me dou conta de que saí sem o chapéu de chuva,
— toma, é melhor levares um,
e novamente vejo-me sem motivo para atrasar, demorar, faltar.
“Cada coisa a seu tempo tem seu tempo”
Estou do lado de fora, na rua. Levo comigo o verso de Ricardo Reis, a mão fechada no bolso do sobretudo, a direita segura no guarda-chuva, o corpo encolhido, como se fizesse muito frio. Dou passos rápidos. Estou atrasado. Ando cem metros, duzentos talvez. E eis que reconheço a Dulce com o tronco debruçado sobre o contentor do lixo, a cabeça quase lá dentro, sacos rasgados no chão, ao seu lado. Caminho para ela,
— bom dia, Dulce,
preocupado com o que vejo,
— o que procura?,
— nada, estou só,
a pescar comida no lixo, diz-me entretanto.
Sempre ganhei o dia
A Dulce deixara de aparecer cá em casa. Ela fazia parte de um grupo de crentes que a minha mãe reúne todas as quartas-feiras, às vinte horas e meia. São encontros semanais organizados e incentivados pela igreja que frequenta. Durante uma hora rezam e partilham temas e experiências de cada um, problemas e ânsias, expectativas. No final, comem e bebem.
Sempre foi claro para todos que a Dulce aparecia nas reuniões mais para saciar a fome do que para receber sugestões de soluções para os seus problemas. Batia-nos à porta quando as coisas corriam mal. Desaparecia assim que melhorassem. Não a julgámos. Afinal, as coisas são como são e ajudar pressupõe dar, nada mais. É o que faço neste preciso instante. Ajudo-a.
Trouxe a Dulce para casa. Servi-lhe carne e pão e refrigerante que sobrou do jantar de ontem. Ela come, envergonhada, enquanto eu escrevo à minha coordenadora a dar conta de que um imprevisto me retém em casa. Que presto auxílio a pessoa amiga. “Tudo bem, Didier, não te preocupes”, recebo como resposta.
Neste momento sinto que ganhei o dia.
Leia todos os textos da coluna de Didier Ferreira em Vida Simples
Alguns sinônimos para ampliar a sua compreensão do português de Portugal:
Telemóvel: celular, smartphone.
Contentores de lixo: depósito para lixo, container.
*Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login