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Máscaras
Victoria Priessnitz | Unsplash
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Ao longo da vida, vivi várias máscaras. Foi a lembrança das diferenças entre elas que se transformaram na inspiração para esta coluna. Que só pode ser escrita em um formato incomum: na primeira pessoa do singular.

Dioniso, ou Baco, é uma figura complexa da mitologia grega. A ele, se conectam os ciclos vitais, as festas, o vinho, os ritos religiosos e o teatro. Por ser filho de uma mortal, Dioniso é visto como o protetor dos que não pertencem à sociedade dos deuses. Por isto, simboliza tudo o que é caótico, perigoso e inesperado. Ainda adolescente, ao decidir participar em um grupo de teatro, conheci as primeiras máscaras, aquelas que no ambiente teatral, simbolizam a comédia e a tragédia. Elas me foram apresentadas no contexto concebido por Dioniso e seus discípulos.

De repente, uma máscara ecoa no carnaval brasileiro. Aquela da música do Zé Keti, que transformou tanta gente “naquele pierrô, que te abraçou, que te beijou, meu amor, na mesma máscara negra que esconde o teu rosto eu quero matar a saudade…”. Assim, o mesmo caráter trágico e cômico permanece nessa letra, como em outras do mesmo autor, para quem acender velas virou profissão.

Logo em seguida, outro carnaval e outras máscaras. Agora em Veneza, onde um amigo local me alertou sobre o cuidado a ser tomado com máscaras e principalmente com quem as estaria usando. Menos com as históricas “baùta” e “moretta” e mais com as produzidas nas confrarias dos “mascareri” modernos. Mais tarde, eles conseguiram agregar ao trágico e ao cômico que esconde o rosto, um traço novo de irresistível sedução nas cores branca, preta e dourada. E, até aqui, a máscara simplesmente escondia ou disfarçava quem estava por trás dela.

Outra máscara

Logo depois, ao me aproximar da prática médica, conheci outra máscara. Uma máscara que tem menos a esconder e mais a proteger. Uma máscara que só passou a existir depois que Louis Pasteur encontrou a razão para explicar porque o leite azedava e desvendou a origem microbiológica das doenças.

Agora, a máscara se transforma em uma barreira protetora para impedir que o médico contamine seus pacientes, principalmente durante as cirurgias. Assim, nem tragédia, nem comédia e nem sedução. Máscara passou a ser um instrumento de proteção. É essa mesma máscara que hoje aparece nos rostos dos habitantes do planeta e que simbolizam a legítima preocupação de se proteger e proteger os outros de um agressor à saúde, o vírus da COVID.

Evolução

Ao longo dos últimos quase dois anos em que nos vimos neste ambiente de mascarados nada carnavalescos, vale observar que as máscaras passam por uma evolução. Tanto técnica quanto estética.

Por ocuparem o centro da face — um ponto inevitável de observação do outro — vêm sendo utilizadas como cartaz de propagação de mensagens variadas. De times de futebol a preferências religiosas. A cada dia vejo uma coisa nova estampada na máscara que, por sua vez, estampa a face que quem a usa. As cores mudam. E os materiais e formatos de que são feitas agora já estão devidamente classificadas em laváveis ou descartáveis, confortáveis ou incômodas, eficientes ou inúteis.

Dessa forma, dá até para prever que elas ainda devem permanecer algum tempo entre nós. E enquanto estiverem por aí, a evolução continua. Cor, mensagem, forma, material e tudo o mais que caracteriza um produto de uso pessoal podem ser objeto desta evolução. Mas outro aspecto deste uso também precisa ser observado.

máscara

Crédito: Pascal Riben | Unsplash

O que ela mostra

Sem dúvida, a máscara mostra a preocupação consciente de quem a usa para evitar contaminar uma pessoa ou de ser contaminado por outra pessoa, com relação a qualquer micróbio que possa se esparramar através de qualquer coisa que sai da boca ou do nariz de qualquer pessoa. Conhecemos e adotamos esse hábito como uma recomendação de base científica para a proteção individual na pandemia.

Aqui no Ocidente, usar máscaras foi uma novidade. Mas na Ásia em geral e no Japão em particular, o uso de máscaras faz parte da cultura local há décadas e é adotado por qualquer pessoa que tenha a possibilidade de espalhar algum contaminante respiratório, mesmo que seja um simples resfriado. Essa prática mostra uma certa educação e respeito pelos outros.

E o que ela esconde

Contudo, a máscara esconde boa parte da expressão facial. Ao cobrir boca e nariz, a máscara supervaloriza os olhos na manifestação do sentimento. Assim, para expressar tristeza, daquelas que se transforma em lágrimas, os olhos serão capazes de cumprir seu papel na comunicação. Mas para expressar alegria, daquelas que se transforma em um largo sorriso, olhos ajudam, mas é preciso contar com uma boca.

Lembro-me de que quando comecei a conviver com pessoas no ambiente de um centro cirúrgico usando máscaras, passei pelo desenvolvimento de uma outra comunicação, muito baseada na observação dos olhos. Além do discurso, olhos se transformam em novos significantes, o elemento tangível dos signos. E em cada momento, esse signo pode ter um significado. O aprendizado, que já vai longe na minha trajetória de vida, aflorou novamente de forma espontânea na medida em que voltamos a conviver com mascarados e mascaradas.

Tirar a máscara

Entretanto, apesar do incômodo que as máscaras atuais às vezes causam, principalmente para quem usa óculos como eu, por enquanto não há como renunciar a elas. Por enquanto, mas já sabendo que ainda não temos ideia do tamanho deste “por enquanto”.  Por isto, se você já aprendeu a ler os olhos, não se esqueça de praticar essa leitura.

Logo, fique também atento aos momentos em que surge uma vontade sutil de pedir para alguém tirar a máscara por um segundo. Em geral, não são momentos de apreciação estética. São momentos em que faz falta a manifestação do que está coberto pela máscara.

Por fim, se isso acontecer, sem desobedecer a todas as recomendações de distanciamento social, afaste-se para uma distância segura e peça para ver a face sem máscara. Faz uma enorme diferença !


FÁBIO GANDOUR é formado em Medicina e dedicou-se à pesquisa científica, mas sempre manteve uma atitude de observador social. Para escrever esta coluna, revisitou um bom pedaço da história. E se surpreendeu ao saber que uma das mais famosas máscaras usadas no carnaval de Veneza, aquela do pássaro com o bico adunco, foi usada pelos médicos na pandemia de peste negra que dizimou a Europa no século XIV. 

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