Jornada do herói: um novo sonho
Nova colunista da Vida Simples, Gabriela Torquato traz à reflexão o peso dos 'superpoderes' distantes e a leveza dos reais, diários e humanos

Parecia mais uma menina a brincar na praia. Com seu maiô colorido, saltitava pela água a fazer sua própria chuva. Ao me ver, sorriu e acenou. Surpresa, retribuí e não consegui mais tirar os olhos daquela menina, como ela não os tirava de mim. Afinal, o que há de melhor em uma praia do que olhar para uma mulher de uma perna só a se equilibrar de muleta na beira da água?
Meus olhos a acompanharam até que ela sumiu. Em um instante, a perdi entre as ondas. Joguei as muletas e pulei até conseguir nadar, em busca dela. Eu a salvei.
Não, calma, isso não aconteceu de verdade.
Mas, de certo, eu queria salvá-la. Talvez seja uma forma de retribuir o sorriso carinhoso em meio a tantos julgamentos em uma praia movimentada. Talvez para que ela não me visse com dó ou pena. Talvez para que me visse como alguém capaz… de coisas importantes, de cuidar de uma criança, ou com superpoderes.
Entre nadar, voar e caminhar
Sempre fui boa em nadar, e também de imaginar. Como uma pessoa com deficiência de corpo tão incomum, tive que aprender a imaginar futuros onde ninguém dava como possível e criar alternativas para viver.
Fui sonhando tanto que era capaz, que comecei a acreditar, fiz outros acreditarem, e de repente estava fazendo, chegando onde tantos nem chegavam.
Parece que a imaginação nunca é demais. Sempre pode mais. Coisas maiores, feitos que nem com duas pernas se costuma fazer. Assim eu construí um currículo extenso, boas fotos e histórias. Minha armadura só engrossava. E eu me tornava um exemplo, de superação até, como uma super-heroína.
Mas que droga! Por que mesmo eu queria salvar essa menina na praia? Não era para protegê-la de um mundo em que eu mesma não pude me salvar ainda.
Quem nos ensinou que precisávamos ser heróis?
Quem enraizou a jornada do herói em nosso inconsciente coletivo a ponto de nortear quase todas as narrativas que consumimos?
Quem criou essas histórias, livros e filmes?
Talvez seja por isso que às vezes nos imaginamos salvando alguém de um acidente, resolvendo um grande problema, criando uma solução inovadora, brilhando em uma reunião importante, alcançando um grande cargo com foto em uma revista, tendo uma empresa de nome reconhecido, sendo o ator principal, um jogar de futebol famoso, ou o herói de uma criança.
Se não imaginou, talvez somente esperou pelo “grande momento” de ser o herói da sua história.
E assim vamos imaginando e sonhando. Mas não é desses sonhos bons, é daqueles que criam raízes, que enrijecem, te fazem se afogar na onda, e não o que te dá asas, te faz alçar voos. Cria apenas frustrações e um grande peso. Te coloca em caminhos que te fazem parecer estar mais perto do papel que te tornará herói.
(Foto: acervo pessoal) ‘E se for herói fosse ter a capacidade de sorrir em meio à turbulência ou ter calma na pressa?’
Super-humana!
Mas e se ser herói fosse nos salvar do peso que tanto carregamos? Se fosse conseguir fazer as coisas mais banais? Se fosse conseguir se cuidar e se nutrir? Se fosse conseguir sorrir em meio à turbulência, ter calma na pressa?
Se fosse ser você, simplesmente? Se despir de expectativas e super heroísmo?
Um pouco a cada dia.
Quanto mais eu tiro a capa de super-heroína, mais me sinto vitoriosa, mais leve e em paz.
Sem a armadura, sou mais eu.
Posso ir na praia e estar ali, inteira, contemplando a vida, vestida como eu quiser, esquecendo todo o resto ao redor, ouvindo apenas o barulho do mar e vendo o brilho do sorriso da criança que me vê e acena para mim.
Posso trabalhar para pagar boletos, fazer o melhor possível daquele momento e voltar pra casa em paz, mesmo sem troféus ou louros.
Posso me sentir realizada e orgulhosa por uma boa noite de sono, e até mesmo por ter paciência no trânsito ou sorrir para a frentista em um dia com pressa.
Mas tirar a armadura exige ter coragem, de encarar o que está dentro, do jeito que é, de ficar nu e sentir o que vier. Aceitar que muito pouco se controla fora, e tanto mais se cria dentro. Abraçar as cicatrizes e imperfeições, as estações e os ciclos.
Não quero mais brincar de ser herói.
Descobri meu novo sonho: quero ser humana!
E ser vista como tal, com uma perna, quatro olhos, e tudo o mais.
Super-humana, aqui vou eu!
Você vem?
➥ Leia mais
– Mostrar fragilidade em meio ao colapso é um ato para a renovação
– Brincar de vida: atividades lúdicas transformam corpo e mente
– Cicatrizes valem ouro?
Os textos de colunistas não refletem, necessariamente, a opinião da Vida Simples.
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login