Há dias assim
Tem dias em que eu só queria desaparecer. Fugir, sumir, abandonar quem sou e por quem me tomam. Tem dias que quero ser ninguém.
Tem dias em que eu só queria desaparecer. Fugir, sumir, abandonar quem sou e por quem me tomam. Tem dias que quero ser ninguém.
Há dias assim. Sinto-me furioso, pronto. Tudo me corre mal, como que de propósito os astros me desarranjando o sossego. Estou zangado, é isso, à beira de um colapso. Ou desejando algo inesperado que me pare, sem mais nem menos, eu caindo num ápice, vedado à razão e ao que ela representa. Ausente por um longo instante que perdure até o meu bom humor regressar. Não me sinto bem assim.
Tem dias em que só queria desaparecer. Fugir. Sumir. Abandonar quem sou e por quem me tomam. Tem dias que quero ser ninguém. E precisamente nesses dias, dias como hoje, fico hiper sensível à estupidez humana, à idiotice que graça diariamente nas nossas redes de sociabilização e fora dela. Tudo me incomoda e nada me acalma. Reconheço-me — eu sei — pólvora chacoalhada no interior de um barril chamado cidade, posto no canto de um armazém denominado sociedade.
Acordei assim? Não! Não me é costume despertar zangado, mal-humorado, irritado. Mas acontece que há dias em que me vejo fragilizado, suscetível aos caprichos do mundo e sem resistência suficiente para suster os erros dos outros.
Começa o dia, com corredores na ciclovia
Hoje é dos dias que, se pudesse, passava-o todo na cama. Às voltas comigo mesmo. Embrulhando-me e desembrulhando-me nos lençóis. Desmanchando a roupa da cama com a minha inquietude. Assim, a desejar parar a tempo. Evitar o abismo. Tenho dias assim. E, tendo de sair de casa,
— Cuidado, Gabriel,
— Mas, por que é que essas pessoas vêm correr p’ra’qui?
Para malfadar o mundo, com toda a sua insanidade. Hoje são estes corredores amadores de estrada na ciclovia: detesto-os. Ranjo os dentes a todo o instante que cruzo por um vindo na minha direção, os que não se desviam. E mais desespero quando correm em parelha, agrupados, ocupando todo o caminho destinado às bicicletas.
— Ó pai, nem a buzinar
— Não sabem que é uma estrada, Gabriel,
— Mas, é uma estrada?
— Assim como os carros andam ali, nós andamos aqui. As pessoas devem correr e caminhar daquele lado, nos passeios.
— Viste, pai, nem se desviam. E estão mesmo a olhar p’ra nós,
— Bem podes buzinar, meu filho,
— Pai, viste aquela senhora, fez cara de má,
— Pois, deixa-a. A verdade é que também temos de respeitar quem não sabe estar.
Exemplo para o meu filho
Preciso ser exemplo para o meu filho, mentalizo a todo o instante. Mas como é difícil educar quando há tanta gente a errar. Tem doze anos. Quero instruí-lo no respeito à natureza e aos outros. A adotar uma vida simples. Assim levo-o para a escola diariamente de bicicleta.
— Pai, pai,
— Diz, Gabriel,
— Viste?
— O quê?
— Consegui andar só com uma mão.
Divertimo-nos imenso nessa meia hora para lá e outra tanta para cá. É a brisa na cara. Os cheiros da terra e do rio. O desafio: ver quem pedala mais rápido. Mas hoje estou de mau humor,
— Viste, pai, viste?
Sem paciência para a alegria do meu filho, respondo
— Sim,
Com o pensamento no obstáculo que me inflama por dentro. Deflagra-me a ira. Estou sedento de briga. Não compreendo: eu que também sou corredor não circulo na ciclovia, senão quando nenhum ciclista nela circula. E faço-o em contramão, para ver quem se aproxima e atempadamente sair do caminho. Mas estas pessoas não. São quase meio-dia e ocupam as faixas com fones nos ouvidos. Não olham para trás. Confiam no ciclista para evitar o acidente. Que raio!
Vamos brigar
Não me vou desviar. Ainda assim buzino para tirar estes dois do caminho. Não me veem, estão de costas e eu, cada vez mais perto, buzino. Nada. Buzino. E nada. Buzino veemente e só quando me sentem tão bruscamente surgido do nada em cima deles se apressam a saltar para o lado, um encavalitando-se no outro, os dois assustados. E eu ouço o “Vai mais devagar, pá” como um projétil rasando a minha cabeça. Paro subitamente a bicicleta. Já se me fecha a mão direita quando corro na direção do impostor. Tenho a mão esquerda repuxando-lhe o tecido da camiseta e num movimento brusco o meu punho paralisa. E questiono-me: para quê isto? O outro se surpreende:
— Que é isso, irmão?
Uma palavra
Irmão. Palavra latina que nos chegou da antiga Germânia. Que é da mesma raça. Afeto entre semelhantes. Membros da mesma irmandade. Eu e estes dois somos iguais. Que legitimidade tenho, portanto, para os ofender desta forma? Razão? Não. Simplesmente caio em mim e percebo quanta dor venho transportando dentro de mim. Apenas tenho dias assim, respondo sem forças:
— Estou num dia mau.
Baixo os olhos, de vergonha. Recordo os versos de Camões: que é fraqueza entre ovelhas ser leão. Percebo o idiota que sou, lutando contra o mundo quando o meu impostor reside cá dentro. Enfim, refreio a minha fúria. Peço desculpas e volto à bicicleta.
— Tudo bem.
Ouço estas palavras de um deles quando arranco. No caminho pondero sobre a minha ação. Arrependo-me. Envergonho-me. Digo a mim mesmo: ainda bem que isto aconteceu no regresso.
DIDIER FERREIRA é escritor, professor de Língua e Literatura Portuguesa, doutorando em Estudos de Literatura na Universidade Nova de Lisboa (Portugal), fundador do movimento Jovens Poetas Vadios, autor de O Diário Poético de um Empregado de Balcão (Esfera do Caos) e neste seu dia de estreia, escreve convicto de que dias melhores virão.
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