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Farmacinha literária: perdas (e ganhos)
Daniel Jensen | Unsplash
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Neste artigo:

Ao nos aclimatarmos à nova realidade produzida pelas perdas, vamos montando o riquíssimo mosaico de experiências. 

Não aprendemos a nomear as coisas. As consideradas boas talvez um pouco mais. Mas as lidas socialmente como ruins, e escorregadias que são, passaram longe da rede de pesca da linguagem. O poeta e escritor angolano Ondjaki sabe disso. Recentemente, quando questionado pela Quatro cinco um (a revista dos livros) sobre o motivo de escolher abordar a melancolia com crianças e jovens em seu novo livro, A Estória do Sol e do Rinoceronte, foi direto e reto: “Justamente por serem temas menos óbvios e menos falados. Acho importante falarmos de amor, mas também da morte. Falar de luz e luzes, mas também da tristeza. Não para apresentar soluções ou fórmulas, mas para incorporar na parte normal e quotidiana da humanidade”. 

Digo logo: este é um texto sobre perda. Se você digitar no Google as cinco letras que a compõe gramaticalmente e contar com a sorte binária, o preenchimento automático poderá ser dos mais bizarros: perda ou perca?; perda de peso; perda de olfato ou paladar; perda de memória recente; perda de olfato; perda óssea. E aí, no fim, ali um bocado tímido ao pé da página, o arremate: perdas e danos.

Há, na complementação derradeira, um convite ao mergulho. Você pode estragar o raciocínio prontamente e dizer que não passa do nome de um filme? Pode. Porém, se espremer um pouco o olhar (e a memória), verá que se esconde entre os rincões do buscador uma vontade latente de entender o que está em jogo quando somos privados ou nos privamos de algo. 

Ganha-ganha

Como sempre, a literatura ilumina caminhos. Não faltam títulos que abordem o tema e que o direcione aos mais variados tipos de desembocadura. Dos mais sofridos aos mais esperançosos, dos filosóficos aos diretivos: na sociedade ansiosa do ganha-ganha, se procurarmos bem, ainda é possível encontrar um jeito distinto de mirar a perda. 

“Para Marina, óbvio”, diz a dedicatória do segundo livro de Letrux. Seu Tudo que já Nadei: Ressaca, Quebra-mar e Marolinhas é uma obra inteira atravessada pelo mar. Fluxo e refluxo de uma narrativa que começa, logo no primeiro texto, com o enfrentamento da finitude: o gosto de chumbo causado em sua boca pela morte prematura de Marina, a prima-fascínio. Estamos na página 15 e temos 141 pela frente entre minicontos e prosa poética. O que vem depois é uma enxurrada de devaneios absolutamente profundos — e gostosos. É de um atrevimento a escrita de Letrux porque ousa transformar o abismo que é perder alguém em um mergulho reflexivo para, quem sabe?, tirar algo um pouco menos doloroso dos resíduos. 

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Meteorologia, eu quero uma pra viver

Entrei num mar inédito, fui ao fundo para que pudesse aguentar a trolha que se anunciava. Ondas maiores vieram, passei pela primeira sem sacode. Um homem surge ao meu lado e, enquanto uma mais gigante ainda se aproxima, diz: “É só mergulhar bem fundo, menina!”. Penso em avisar que sou filha dela e não donzela à procura de um resgate, mas apenas obedeço e ralo meu peito na areia. Resíduo de sacode.

— Trecho extraído do livro Tudo que já nadei, de Letrux 

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perdas e ganhos

Crédito: Shawn Appe | Unsplash

Há uma outra obra, dessa vez de Simone de Beauvoir, que também lida com a perda de uma pessoa querida. As inseparáveis conta, em parte, a história de Simone e sua melhor amiga, Élisabeth Lacoin, também conhecida como Zaza. Na autobiografia ficcional, publicada 67 anos depois de escrita, acompanhamos a construção do vínculo afetivo entre Andrée Gallard e Sylvie Lepage.

A audácia de Andrée, seu jeito controverso, desinibido e insolente encantam de imediato, ainda aos nove anos de idade, a tímida e disciplinada Sylvie,  aqui representando Simone. É uma relação passional daquelas que só a infância — por enquanto protegida e não completamente atravessada pelas corrupções do mundo lá fora — é capaz de proporcionar. 

O romance é marcado pela morte precoce de Andrée, tal qual a vida de Simone foi marcada pelo falecimento de Zaza, aos 22. O rastro desse encontro (e de sua falta) é encontrado em toda a obra da filósofa. É o choque desses dois universos o responsável por boa parte da própria tomada de consciência da também escritora. A perda da companheira dói, mas também transforma Simone. “Acredito que paguei minha liberdade com sua morte”, disse, em suas memórias.

Além da supressão óbvia nos dois títulos trazidos a essa coluna, há um outro fio invisível que une as narrativas. Escreve a poeta Luiza Mussnich em palavras para o dia de falta: eu lembro / daria tudo para esquecer. Perder é, também, essa balança constante de reprimir e trazer à tona. Mas não temos para onde fugir. A vida é entrecortada por perdas reais e simbólicas o tempo todo. O simples fato de crescer já é exercício de abdicar. Mas é também nesse desapossar de algo que habita e se estica nossa capacidade de adaptação. Ao nos aclimatarmos à nova realidade produzida, vamos montando o riquíssimo mosaico de experiências. Das nossas. Elaboramos a perda, superamos o luto. Reintrojetamos o objeto amado e o reestruturamos em nossa internalidade. Passamos a nos reconstruir e nos reorganizar. 

No fim do texto de abertura de Tudo que já Nadei, Letrux parece, ao fazer uso curioso das palavras, entender essa lógica no corpo. “Flores que parecem um nariz, vozes que parecem envelopes. Do alto desse coreto, eu espero na escadinha, enquanto você caminha até mim. Talvez chova nesta tarde. Cai a lua. Gira o sol. Marina ganhou uma prancha de surf”. Não é justamente sobre isso? As perdas e os ganhos do perder. E, para isso, é preciso lembrar. Você lembraria ou daria tudo para esquecer?


GABRIELLE ESTEVANS é jornalista e psicanalista. Já perdeu um bocado, elaborou alguns lutos e é dada a lembrar mais do que a esquecer. Escreve sobre literatura, gênero e política e, na Vida Simples, receita livros para variados tipos de dores e amores.

*Os textos de nossos colunistas são de inteira responsabilidade dos mesmos e não refletem, necessariamente, a opinião de Vida Simples

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