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Muito prazer, somos o Rodrigo
SIphotography | IStock t
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Neste artigo:

Não adianta disfarçar, eu sei que tem mais gente aí dentro da sua cabeça.

Na coluna passada, falei aqui do tirano interno, essa voz dentro da minha cabeça que me critica, me culpa, me cobra. Publicado o texto, fiquei aqui, esperando os questionamentos, as críticas, o espanto: “como assim, você tem mais de uma voz dentro da cabeça?” Mas ninguém questionou. Muita gente escreveu para dizer que também se cobrava, tinha seu próprio tirano. E houve os que escreveram para comentar outras coisas, como se o fato fosse óbvio demais para ser mencionado.

Por essa minha estatística de boteco, que não tem rigor técnico nem amostra válida, deduzi que, no final das contas, todo mundo tem na cabeça uma voz julgadora. Achei espantoso. Porque, até onde eu sei, ninguém leva em conta essa divisão interna no dia-a-dia.

“Oi, muito prazer, somos o Rodrigo.”

“Oi, Rodrigo, nos chamamos Marcela.”

É besta, mas estaria mais próximo da verdade. E ajudaria a dar mais consciência de quem está no comando a cada interação.

“Nunca fui tão ultrajado em minha vida!”

“Opa, quem está falando aí? Você ou a vítima?”

Somos muitos

Sim, porque o tirano não é o único intruso mental, capaz de assumir as picapes e comandar a pista. Há também a vítima, que vive procurando algozes. Tem ainda o sedutor, que tenta obter o que quer insinuando interesses inexistentes pelos outros. Ou o desonesto, que não consegue jogar pelas regras porque não acredita que pode ganhar. Entre muitos outros. Sim, sou uma legião.

Mas raramente tenho consciência dessa quizomba. No dia-a-dia, ando por aí como se o comando estivesse sempre nas mãos daquele sujeito são, sensato e consciente que atende pelo nome de Rodrigo. Curioso que, escrevendo agora, fui procurá-lo no auditório aqui e não encontrei ninguém que correspondesse a essa descrição.

Se é que de fora eu consigo parecer uma pessoa razoável, eu diria que essa ilusão de harmonia é fruto de um equilíbrio dinâmico entre as diversas pulsões que me habitam. Meio como andar de patins: uma sucessão de quase tombos que promovem um avanço, mais ou menos balanceado.

Respiração

Mas, às vezes, vem um lampejo que permite uma visão esclarecedora do que acontece lá dentro. Escrevi tudo isso até agora só para contar essa história.

Foi num retiro. A certa altura, os organizadores nos dividiram em duplas, para fazermos uma sessão de respiração holotrópica, uma técnica de respiração vigorosa que promove um estado alterado de consciência. Eu nem sei explicar o que acontece. Melhor você pesquisar na internet.

tirano

Crédito: Benn Mcguinness | Unsplash

Seriam duas rodadas. Na primeira, meu parceiro cuidaria de mim enquanto eu respirasse, depois inverteríamos os papéis. A instrução era para que, deitado, de olhos fechados, eu respirasse pelo nariz ininterruptamente, com vigor e rapidez, movendo os braços rapidamente (do alto da cabeça até a cintura e de volta até o alto) para ajudar na expansão e contração máximas dos pulmões.

Por duas horas

Fechei os olhos e comecei. No que minha cabeça contabilizou como cinco minutos, comecei a ter dores fortíssimas nos braços, no tronco, no pescoço. Tenho alguns acidentes no currículo que limitam alguns movimentos e me deixam vulnerável a contusões. Comecei a questionar se eu estaria apto à tarefa.

“Será que isso pode agravar minha condição? Porque a dor está forte”, pensei enquanto respirava com toda a força que tinha. “Não está insuportável, verdade”, ponderei. “Mas para que todo esse sofrimento, afinal de contas?”. Algumas dúvidas me assaltavam.

Desisto?

“Putz, mas eu paguei para estar aqui. Confio nos facilitadores. É claro que tem benefício nisto.” Lembrei de outras situações em que eu tinha entregado os pontos cedo demais e tinha estragado a experiência, por medo, por desconforto. Fiquei indignado comigo, ao lembrar desses fracassos.

“Já vai esmorecer?”, perguntei a mim mesmo, com certo desdém. “Já vai fraquejar de novo, diante da primeira dorzinha que aparece? É muito ridículo. É muita falta de brio. Só foram cinco minutos! Você já quer desistir ou afrouxar?”

“Cinco minutos?”, me dei conta, de repente. “Significa que ainda tem mais 115 minutos desta desgraça? Não dá, eu não vou aguentar.”

“É bem do seu feitio, mesmo.” Eu já tinha perdido a confiança em mim mesmo. “Não acredito que você vai se entregar tão cedo, de novo. Você é um fiasco.”

“É fácil falar, vem fazer aqui no meu lugar.”

Tirano interior

Se eu estivesse contando esta história ao vivo para você, eu faria agora uma pausa dramática, para enfatizar a importância dessa última fala.

Porque esse foi um momento meio mágico, para mim. Talvez pela primeira vez, eu me dirigi diretamente ao tirano que mora aqui dentro, desafiando sua autoridade. E o principal: desafiando o pressuposto, normalmente aceito, de que ele trabalha no meu interesse. Estávamos ambos em território desconhecido.

Do lado de fora, eu continuava deitado, de olhos fechados, mexendo os braços freneticamente e respirando alucinadamente. Detalhe: éramos 50 participantes, ou seja, havia outras 25 pessoas deitadas em colchonetes à minha volta, todas movendo-se como se seus corpos estivessem possuídos.

Mas, dentro da minha cabeça, eu e meu tirano duelávamos fora do espaço e do tempo. Eu nem sei quanto tempo se passou, até que eu me vi frente a frente com ele, que era igual a mim e me acompanhava em movimentos ritmados.

tirano

Crédito: IStock

Mesmo encantado com aquele encontro, pude notar que os movimentos que eu e meu outro eu fazíamos eram um remake de uma cena do filme Karatê Kid. Nela, o jovem Daniel San, em pé sobre uma estaca ao pôr do sol, dá chutes no ar com os braços erguidos, trocando o pé de apoio a cada salto. Meu inconsciente tem decoração de época.

Consciência

Apoiados cada um sobre uma estaca sobressaindo da superfície de um lago, eu e meu outro eu nos incentivávamos mutuamente. Não era uma competição. Ele não queria me derrotar para mostrar que era melhor que eu. Ele estava lá para me apoiar, daria chutes no ar junto comigo enquanto eu aguentasse. Enquanto eu achasse que valia a pena.

As dores desapareceram. Pelos 90 minutos seguintes, arfei e bufei como um bicho, movi os braços com a energia dos anos de atleta e gritei a plenos pulmões, incentivando a mim e a todo mundo no recinto a ir além. Embora estivesse imerso em outra dimensão, eu tinha consciência do que acontecia à minha volta, sei lá como.

Quando acabou, havia uma poça de suor à minha volta.

É difícil descrever o estado de espírito que me habitou pelas semanas seguintes. Uma das diferenças marcantes foi o senso de valor próprio. Quando o tirano interno calou-se, o ruído de fora ficou indisfarçável. Pude então distinguir as relações que me nutriam. Aquelas em que eu me sentia visto e respeitado. E impor limites àquelas que não me davam valor. Alguns relacionamentos mudaram para sempre.

Devo confessar que desde então o tirano voltou várias vezes ao comando. Às vezes passou-se muito tempo até que eu questionasse seu interesse. É um processo. Aceito, agradeço.


RODRIGO VERGARA é jornalista e demorou para se assumir ator improvisador, facilitador de processos de confiança em equipe (www.ria.works). Levou mais tempo ainda para criar coragem de fundar o PlayGrounded – A Ginástica do Humor, que é sua paixão.

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