Suas crenças, minha verdade
Quando eu descobri que não acreditar em algo também era crer. Foi um daqueles momentos de “eureka”, de revelação. Na época em que aconteceu, eu estava em meio a uma crise de identidade, disparada por acontecimentos que derrubaram as noções que eu tinha de mim mesmo. É curioso que, quando desmoronaram esses pontos de referência […]
Quando eu descobri que não acreditar em algo também era crer.
Foi um daqueles momentos de “eureka”, de revelação. Na época em que aconteceu, eu estava em meio a uma crise de identidade, disparada por acontecimentos que derrubaram as noções que eu tinha de mim mesmo. É curioso que, quando desmoronaram esses pontos de referência sobre mim, em vez de fechar-me ainda mais nas minhas verdades, me vi muito mais aberto. Foi como se, de repente, eu descobrisse uma disposição para levar em consideração uma porção de coisas às quais eu nunca tinha dado ouvidos.
Em meio à busca que se iniciou com a crise, passei a seguir qualquer recomendação dos amigos. E foi um desses “sim” impensados que me levou a um retiro espiritual, promovido por um estrangeiro que se apresentava como mestre. Dessa forma, passei quatro dias em seu sítio, ouvindo suas palestras, me alimentando de sua horta e dormindo em suas acomodações.
Verdade e ensinamentos
Assim, com uma presença benevolente e uma voz amorosa, o mestre começou falando sobre suas viagens pelo mundo e os desafios que enfrentou. Falou sobre seus perrengues e compartilhou as descobertas que eles suscitaram. Absorto, em meio aos ouvintes, me sentia em paz, absorvendo sua sabedoria.
Entretanto, no segundo dia, notei uma mudança importante na temática: saíram de cena as descobertas, subiram ao palco os extraterrestres. O mestre afirmou que os ETs viviam entre nós. Não só: disse que haviam outros, vivendo sob a terra, em mundos subterrâneos.
Aquela mesma voz doce e sábia do dia anterior, que me acalmava, de repente ligava meus alertas, afirmando tranquilamente haver uma realidade alternativa ao meu redor, que não combinava em nada com a mobília da minha mente. Sim, porque o grande salão que exibe minha visão de mundo está decorado, basicamente, com os itens que a ciência diz que existem. E ponto. Uma estátua de um ET, ali no meio do salão, eu acharia ridículo.
Amparo na ciência
Em defesa dessa minha maneira de ver as coisas, dessa minha verdade particular, é preciso dizer que fui jornalista em uma revista de divulgação científica. Entrevistávamos as melhores cabeças, colocávamos teorias e ideias à prova. Até onde ia meu conhecimento, acumulado em anos de trabalho jornalístico, não havia prova documental da visita de ETs ao nosso planeta. Muito menos de que eles convivam conosco, incógnitos. Para não falar dos mundos subterrâneos.
Coroando meu currículo no assunto, em 1997 viajei a Varginha, para fazer uma reportagem sobre o visitante famoso da cidade. Entrevistei as garotas que disseram ver o ET. Encontrei por lá depoimentos inconclusivos, teorias da conspiração e gente aproveitando a visita cósmica para fazer negócio ou tirar vantagem.
Quais crenças?
Naquela noite, no centro do guru, fui dormir inquieto. No terceiro dia, encontrei por coincidência um ex-colega de trabalho. Ele frequentava o centro do guru havia tempos. Como é natural, o sujeito quis saber o que eu estava achando da experiência e do mestre.
Crente de que ele compartilhava da minha visão ancorada na ciência, falei com sinceridade. Disse que havia gostado muito dos momentos em que nosso anfitrião narrava suas experiências e descobertas pessoais. Mas que, quando ele falava daquilo em que ele acreditava, como as histórias dos ETs, isso não me interessava nem um pouco.
Concluí minha resposta com um sorriso, que sugeria haver entre eu e o colega uma cumplicidade e até uma condescendência com essa pequena limitação do mestre. Quem nunca, né? Mas o amigo não concordava comigo. E sua resposta ainda ecoa na memória: “Não é questão de acreditar. É questão de ler. Tem muitos sites e livros falando sobre a presença dos extraterrestres entre nós. Está documentado”.
Verdade revelada
Minha primeira reação foi de espanto e receio, pela gafe: eu praticamente havia tachado de “maluquice” aquilo em que ele e seu mestre acreditavam piamente. Por fim, dei uma desculpa para encerrar o assunto e evitar um conflito. Não queria enveredar por uma discussão em torno de ETs, com alguém que acreditava naquilo. Como resultado, passei o dia evitando falar com ele.
Mas, à noite, tive um insight. Ou, no jargão técnico mineiro, um “alumiamento”. A verdade que eu sustentava, sobre a inexistência de ETs no planeta, não era absoluta. Não era nem muito mais confiável que a verdade dele, que via aliens na vizinhança. Se eu achava que suas fontes não podiam provar a existência de ETs, as minhas não me permitiam provar a inexistência dos visitantes de Varginha. A ciência não se presta a isso.
Então me veio o entendimento, que até hoje me salva de cair no mesmo buraco. Não se trata de dizer que “fulano acredita que existem ETs na Terra. Eu não acredito nisso”. Desde aquela data, para mim faz mais sentido dizer que “fulano acredita que existem ETs na Terra. Eu acredito que não existem”.
Sem provas
A diferença é sutil, mas importante. O que eu percebi naquela ocasião, e que me marcou, foi que minha descrença na afirmação do outro também pode ser uma crença. Naquela situação, era exatamente o que estava ocorrendo: tínhamos crenças distintas, que de certa maneira se equivaliam.
Enquanto você lê, sua cabeça pode estar fazendo o que a minha tentou, na ocasião: comparar a qualidade dos indícios de cada crença, para dizer que os meus, amparados por cientistas, eram muito melhores do que aqueles sites esotéricos do guru.
Mas isso não invalida a verdade maior: eu não tinha como provar a inexistência dos ETs. Não se tratava da crença dele e da minha verdade. Uma vez equivalentes, tanto fazia chamar ambas as ideias de “crença”, ou de “verdade”. O que me levava a elevar a minha crença sobre a dele e a tratá-lo com desdém não era nada mais, nada menos, que arrogância.
Crenças e calma
No momento do alumiamento, houve uma mudança em mim. Uma tensão se soltou. Uma tensão conhecida, que aumenta toda vez que eu entro em conflitos de opinião. Um nó nas tripas, que me prepara para defender minhas verdades como se delas dependesse minha existência. Um nó, veja só, como aquele que havia acabado de me levar à crise de identidade que eu enfrentava.
Quando o entendimento desatou o nó e tornou inútil a atitude de defesa, senti a tensão arrefecer. O corpo e a mente relaxaram, o espaço interno se abriu. E as novas verdades puderam se acomodar, muito mais confortavelmente.
Achei que você ia gostar de saber dessa história.
RODRIGO VERGARA acredita ser jornalista, ator, improvisador, facilitador de processos de confiança em equipe e fundador do PlayGrounded — a Ginástica do Humor. Às vezes se sente um ET no mundo.
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