Arte e carrancas: memórias da casa da minha avó
Nesta coluna, Iasmine compartilha uma memória de infância que mistura afeto às carrancas, uma poderosa tradição figurativa da arte popular brasileira.
Bolo de fubá quentinho, biscoito amanteigado, bolinho de chuva ou o bom e velho prato caprichado de arroz e feijão. Para muita gente, são essas as lembranças da casa de vó. Eu, engraçado, lembro das carrancas. Aquelas que, de olhos esbugalhados e bocas bem abertas, guardavam a entrada da sua casa em Juazeiro, no interior da Bahia.
Sei que agora você pode estar se perguntando que raios é uma carranca? Querido leitor, falo de um ícone da cultura popular brasileira, nascido às margens do Rio São Francisco. Uma mistura de gente com bicho de verdade ou fantasia, com cavalo, leão, cobra e até vampiro. Carrancas faziam longas viagens no rio, esculpidas na proa das embarcações que carregavam sal e rapadura, de Pirapora à Juazeiro, espantando para bem longe os maus espíritos.
E era assim que, naquele doce lar de criaturas marinhas míticas, nada nem ninguém ousava meter-se a besta com os navegantes: nem o Minhocão, serpente zangada que desbarrancava os leitos do rio, o Caboclo D’água, criatura cor de bronze que assombrava pescadores, e muito menos a sereia de cabelos longos Mãe D’água, que os atraía em irresistíveis maldições.
Carrancas, amuletos do Velho Chico
Paulo Pardal, o maior estudioso do gênero, afirma que as primeiras carrancas datam de 1875-1880, mas o seu uso no médio São Francisco só se generalizou no século XX. Aliás, durante toda a primeira metade deste século, quem produziu mais da metade das figuras de proa que circulavam em uma extensão de mais de 1.300 km do rio foi o Mestre Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1882 -1985).
Na década de 1940, contudo, as pesadas barcas adornadas com as peças monstruosas começaram a ser substituídas por canoas modernas, motorizadas, e, em 1945, Guarany esculpiu a sua última carranca para fins de navegação. Mas foi só nos anos 1950 que elas ganharam a atenção do circuito de arte, e a consagração definitiva do trabalho do respeitado carranqueiro veio em exposições de 1969, “A mão do povo brasileiro”, e 1975, “O Rio: carrancas do São Francisco”, no Museu de Arte de São Paulo – MASP.
Das mãos de Guarany surdiram monstros
que colocados na proa dos barcos
protegiam os viajantes contra os terrores do rio.
Eram monstros benignos, conjunção de forças
milenares
enlaçadas na mente de Guarany.
As águas purificaram-se, as viagens
tornaram-se festivas e violeiras.
E ninguém temia a morte, e o louvor da vida
era uma canção implícita no cedro das carrancas.
Trecho do poema Centenário, de Carlos Drummond de Andrade, em homenagem ao mestre Guarany.
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As carrancas pararam de navegar, mas permaneceram suportando crenças populares e logo passariam à proteção doméstica, servindo para afastar as energias negativas das famílias da região, posicionadas logo à porta de casa. Ganharam também o mercado turístico e, com isso, multiplicou-se a quantidade de artesãos que incorporaram o ofício.
Até hoje, uma das mais procuradas é a “carranca vampira”, popularizada na década de 1970, com predomínio das cores preta, vermelha e branca. A vampira foi criada pelo escultor Mestre Bitinho, de Petrolina, que conta ter ficado inspirado depois de assistir ao filme “A Fuga de King Kong”, de 1967, lançado em 1971.
Também em Pernambuco, a ceramista Ana Leopoldina dos Santos ficou nacionalmente conhecida como “Ana das Carrancas”. As suas, produzidas com o barro extraído das margens do Rio São Francisco, tinham olhos distantes, vazados, em homenagem ao marido, que era deficiente visual.
Arte, memória e afeto
Quando criança, morria de medo daqueles seres pedestais, grotescos, impassíveis, mal-humorados. Um dia, muitos anos depois da morte de minha vó, em uma visita a uma galeria de arte paulistana, compartilhei essas memórias e recebi de presente o livro “A Viagem das Carrancas”, organizado pelo professor e curador Lorenzo Mammì, por ocasião da mostra de mesmo nome no Instituto Moreira Salles, no Rio de Janeiro, e na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2015.
Naquele dia, compreendi que eu também precisava de uma travessia segura. Sentei-me no sofá de casa (não mais no Nordeste, uma pena!), devorei o livro, descobri as ricas crendices do Velho Chico e naveguei para dentro e longe com as carrancas, que virariam para sempre o símbolo do caráter onírico da casa de minha vó.
“Carranca que chora
Velho rio que mora no meu coração
Navega gaiola
Vai presa na vela, a minha paixão”
Carranca que chora, Geraldo Azevedo.
Dedico esse texto à minha Vó Jacyra, de onde ela estiver, mulher com sorriso de criança e coração sempre embevecido de amor.
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