A pergunta “O que você vai ser quando crescer?” sempre me afligia. Eu poderia ser qualquer coisa, qualquer coisa mesmo? Bailarina, arqueóloga, cientista. Todas essas profissões me habitavam. Mas, aos poucos, percebi que nenhuma delas, de fato, me representava. Eu era um desastre no balé, e a única coisa de que gostava na arqueologia eram os filmes de Indiana Jones. Havia algo apenas que eu admirava profundamente: meu pai.
Médico, cardiologista, desses que vão até a casa do paciente para acompanhá-lo. E eu adorava fazer essas visitas com ele. Quando entrava, os olhos das pessoas brilhavam e um sorriso enorme se abria porque o médico estava ali. Ele sempre conversava muito, se interessava pelo outro, pelas suas dores e aflições. Um dia, lhe perguntei quando havia decidido ser médico: “Quando era criança”. Então ele me contou uma história linda sobre o dia, em sua casa de infância, em que todos estavam muito preocupados com a saúde de uma tia. “Mas, quando o médico chegou, percebi que a aflição de todos se desfez apenas pela presença dele ali.
Cresci querendo causar isso no outro e por isso fui fazer medicina”, me contou. Li uma trajetória parecida no livro A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver (Casa da Palavra), da médica Ana Claudia Quintana Arantes, especialista em cuidados paliativos. Em um dos trechos da obra, ela conta sobre o médico que cuidava da avó dela. Um homem alto que também se perdia nas conversas, olhava para o outro, sabia ouvir. A avó sofria uma forte dor crônica, mas só a presença do médico, de alguma maneira, já era parte do tratamento. Hoje, Ana Claudia é uma das médicas que mais admiro, por seu olhar compassivo e sua postura tão profissional, sem perder a doçura e a perspectiva do outro.
São histórias como essas, de gente que faz o que faz com tanta paixão, prazer e felicidade, que servem como ponto de partida para chegar ao trabalho dos sonhos. Para fazer esta reportagem e desvendar esses caminhos, conversei com várias pessoas, li alguns livros e artigos, assisti a documentários. O objetivo era entender como conseguir ser feliz naquilo que se faz. É possível unir satisfação, felicidade e trabalho? Uma das frases que mais me inquietaram nessa busca, mas que também serviram como norte, foi a do escritor e filósofo Albert Camus: “Sem trabalho, toda a vida apodrece, mas, quando o trabalho é desprovido de alma, a vida sufoca e morre”. A partir dessa afirmação comecei a entender que o problema em relação à nossa atividade profissional começa de um ponto essencial, no início de tudo. Passamos a infância ouvindo: “O que você vai ser quando crescer?”; na adolescência, “Qual profissão você vai escolher?”; já adultos, seguimos ouvindo: “Qual o seu trabalho?”. Ninguém — nem a gente mesmo — faz a pergunta certa: “Qual trabalho conversa com a sua alma?”.
Conversas com a alma
Se eu admirava tanto o que meu pai fazia, por que não me tornei médica? Na verdade, eu quis, por algum tempo. Mal terminei o colégio, já prestei vestibular para medicina. Não passei. Fui fazer cursinho e, nesse tempo dedicado apenas às minhas escolhas, percebi que não era aquilo que queria para mim. Eu gostava de escrever, de conversar, de ouvir histórias (assim como meu pai), mas não gostava de mergulhar nas questões do corpo. Decidi pelo jornalismo.
E a notícia chegou como tempestade para os meus pais. Para eles, havia apenas alguns poucos caminhos: medicina, engenharia e direito. Restrito. Segui mesmo assim e ouvi da minha mãe algo que me tocou: “Você seria uma ótima médica, porque sabe enxergar, ouvir e lidar com o outro”. Sim, eu sei, mas não era a medicina que minha alma queria. E essa escuta, a da alma, é algo que a gente demora para apurar. E, sim, a escolha da carreira é fortemente influenciada pela casa da infância, os pais e as relações que tecemos com eles. E entender isso nos ajuda muito a perceber os motivos (certos ou errados) que nos levaram aonde estamos hoje.
Foi assim também com a coach Mônica Barroso, que hoje dá uma aula de nome atraente na The School of Life, em São Paulo, Como Encontrar um Trabalho Que Você Ame. Mônica é filha de um dentista com uma funcionária pública, então algumas das conversas em casa giravam em torno das questões que seu pai vivenciava no consultório ou da mãe durante seu expediente. Ao mesmo tempo, ela vivia no interior e gostava de tomar banho de rio, brincar ao ar livre, subir em árvore. Mas, sem se perguntar o que conversava com a alma, ela decidiu seguir uma carreira parecida com a do pai e ser médica.
“Fazemos isso pelo desejo (muitas vezes inconsciente) de sermos bons filhos e, assim, não perdermos o amor dos pais. Sem percebermos, esse amor se interpõe às nossas escolhas”, esclarece. Quando não passou no vestibular de medicina, Mônica, como muita gente que tenta algo com afinco, ficou arrasada. Então se deu um tempo, e foi quando se deu conta de que talvez não fosse mesmo medicina. Foi para São Paulo estudar, prestou vestibular para administração, ainda sem ter muita certeza disso, e passou. Mas não seguiu um caminho que diziam ser o mais certo, como tentar carreira numa grande empresa.
Mônica foi trabalhar em uma ONG que atuava junto a comunidades ribeirinhas da Amazônia. Ela era responsável por implementar projetos econômicos. “Na equipe, havia também médicos e dentistas, e eu pensava: ‘Será que se eu tivesse feito medicina também estaria neste mesmo lugar?’. Foi então que entendi algo essencial quando buscamos nosso caminho profissional: mais do que escolher uma profissão, precisamos, antes, entender o que nos motiva a trabalhar com isso ou aquilo. E a minha motivação não era cuidar da doença ou preservar a saúde, mas ajudar o outro”, conta. Isso é algo que muitos de nós nunca percebemos: não é a profissão que determina nossos caminhos, mas a motivação que nos leva até ela — e isso está intrinsecamente relacionado com a alma. “A partir disso, realizei que posso alterar a rota profissional desde que não perca esse fio condutor que é o cuidar do outro. O trabalho não é o fim, mas a ferramenta a serviço do outro”, diz ela, lindamente.
Além disso, Mônica também percebeu que a criança que era e que gostava do contato com a natureza seguia a acompanhando nas suas decisões — e esse é outro ponto importante. “As pessoas devem se questionar o que gostavam de fazer nas brincadeiras de criança. De nadar no rio, de segurar na pedra, de sentir o cheiro das plantas. Eu gostava de tudo isso, e são elementos que estão presentes na minha vida até hoje, seja nas minhas viagens para a Amazônia, seja nas plantas que eu coloco na minha mesa de trabalho”, afirma Mônica.
Brincadeira de criança
Parece longe, eu sei, dizer que olhar para a criança que fomos nos ajuda a encontrar ou reencontrar nossos caminhos profissionais. Mas, acredite, isso é essencial para identificar um trabalho que esteja em consonância com a pessoa que você é, mesmo já grande. Você gostava de brincar de astronauta, de empinar pipa, de médico, de casinha, de cozinhar? Mas o que exatamente o atraía na brincadeira? Lembro que a primeira vez que fui questionada sobre isso achei de uma estranheza enorme. Eu estava numa aula sobre trabalho, com o inglês David Baker. E ele começou a levantar várias questões sobre essa fase da vida.
Entre as brincadeiras de criança e o que me motivava a gostar delas (olha a motivação de novo aí) estava a tal da conversa com a alma. No meu caso, eu gostava de criar, de construir aquela história, de perceber como cada um na brincadeira interagia com o outro. Como disse, de maneira extremamente sensível, o educador e artista plástico que pesquisa o brincar Gandhy Piorski no documentário Território do Brincar: “O humano que as crianças nos ensinam é o que nos torna capazes de tomar decisões a partir de nós mesmos”. Sim, a decisão por seguir este ou aquele caminho profissional não pode ser ditada apenas pelo mercado ou pelo salário, mas por aquilo que você quer para si. E a sua criança pode ajudá-lo nisso.
A partir desse ponto você também passa a perceber que seu leque de possibilidades é bem maior do que imaginava. O seu caminho não é mais ditado pelo que você escolheu como profissão, o que é limitante demais, mas pelo que está por trás disso, o que o atrai, toca, conversa com você dentro daquilo que faz todos os dias. No livro Como Encontrar o Trabalho da Sua Vida (Objetiva), o filósofo Roman Krznaric traça um ótimo panorama dos motivos pelos quais o trabalho ocupa um lugar tão importante na nossa vida e por que, na maior parte das vezes, temos tanta dificuldade em promover mudanças, mesmo diante da insatisfação.
Historicamente, por exemplo, nunca tivemos tantas opções de caminhos como hoje em dia. Até a Revolução Industrial, essas decisões eram impostas. Era uma questão de destino e necessidade, em vez de liberdade e escolha. Um filho de ferreiro, por exemplo, seria um ferreiro. E as mulheres? Cuidariam da casa e da prole. Não havia mobilidade. Mas, a partir do início dos processos de industrialização, as oportunidades de carreira se ampliaram e as escolhas também.
Em seus estudos sobre trabalho, Krznaric concluiu que uma carreira realizadora está ligada a três aspectos fundamentais: sentido, fluxo e liberdade. “As pessoas realizadas têm alguma combinação dos três, e também desconfiam da submissão excessiva por dinheiro e status”, escreve. O sentido está diretamente ligado a, exatamente, ver algum sentido no que faz. Lembro, até hoje, de uma conversa com uma economista que era executiva de uma grande cadeia de fast-food. Aquilo que fazia e a maneira como a empresa obtinha seus lucros não a incomodavam até o momento em que se tornou mãe.
Quando a primogênita nasceu e ela passou a vivenciar a beleza que é ver um filho crescer, começou a evitar os lanches rápidos. E passou a se perguntar como poderia incentivar e convencer outros pais a dar à prole uma comida que ela mesma não oferecia para a própria filha? Foi a partir desse incômodo, tão ligado ao seu coração, que pediu demissão e mudou o rumo da carreira para se dedicar a algo que fizesse mais sentido e voltasse àquele ponto inicial deste texto, que conversasse com a alma. E criou uma pequena empresa de entrega de lanches (com suco caseiro, frutas e sanduíches saudáveis) para as crianças cujos pais não têm tempo — nem criatividade — para montar a lancheira da molecada.
Agora, sim, ela havia encontrado um sentido para o que faz. Isso não significa, claro, sempre largar tudo para virar um empreendedor. A questão é realmente você ver significado onde atua, não só para você mas para as pessoas ao redor. É possível trabalhar na indústria de remédios e ver sentido naquilo; em fábricas de materiais de construção, de eletrodomésticos. Se está tudo bem para você, então o caminho é acertado.
Outro ponto citado por Krznaric, o fluxo, tem a ver com não se acomodar diante daquilo que não lhe faz bem. Trabalhar apenas e somente para pagar as contas e se ver preso a algo de que não gosta — e acreditar que será feliz quando a aposentadoria chegar — pode ser uma boa forma de desperdiçar tempo e energia de vida. Uma experiência de fluxo é aquela em que estamos completamente absortos no que fazemos, seja andando de bicicleta, praticando ioga, seja apresentando os resultados financeiros da empresa para os acionistas. O seu envolvimento com aquilo é tamanho, naquele momento, que nada mais importa. Uma sugestão para que você encontre aquilo que o coloca nesse estado de fluxo é fazer um diário e ir anotando as tarefas que proporcionam isso: uma determinada pesquisa para o desenvolvimento de um produto; a leitura de um artigo; a conversa com um colega sobre os dados que ele está analisando — e que para você parece algo extremamente curioso.
Por fim, a liberdade. Você pode experimentar esse sentimento, mesmo em algo com uma carga horária convencional, das 9h às 18h, em um local tradicional. E tudo bem. O objetivo é não se sentir sufocado em suas tarefas diárias. Trabalho não deve ser prisão. Mas o excesso de liberdade, da agenda, do horário, também pode ser amedrontador. Então, antes de tomar essa decisão, avalie se essa flexibilidade de agenda de fato combina com você, com sua personalidade e estilo de vida. Mas se, mesmo depois dessa conversa que tivemos aqui, você ainda estiver com medo de mudar e seguir um caminho que tenha mais a ver com a pessoa que você é…
Se serve de consolo, não estamos sozinhos com nossas incertezas. “Tememos que o trabalho não nos ofereça a satisfação esperada, ou que não sejamos bem-sucedidos no novo campo, ou que estejamos muito velhos para mudar, ou que não possamos assumir o risco econômico com um financiamento doméstico tão caro ainda por pagar, ou então que não possamos retomar ao nosso antigo emprego caso o plano de virarmos artistas ou perfumistas não dê certo. O medo do fracasso chega a ser quase uma aflição universal”, revela Krznaric.
Além disso, tem algo que, para mim, trouxe um grande alívio quando percebi — e que divido aqui: o trabalho dos sonhos, a carreira ideal, não é algo que encontremos, mas sim que cultivamos. Nunca estará pronto, integralmente perfeito. A vida muda o tempo todo, a gente amadurece, percorre estradas diversas (dentro e fora de nós), e as nossas vontades e desejos profissionais também se alteram. É uma conquista diária, e essa é a graça maior dessa história toda. Como disse George Eliot, pseudônimo da romancista Mary Ann Evans, na obra Middle-march: “Eu não me arrastaria pelo litoral, mas remaria mar adentro, seguindo as estrelas”. Então não se arraste pela vida em algo que não o faz feliz ou pela paralisia da escolha. Você pode criar redes de proteção para dar esse salto, pode fazer uma reserva financeira, pode fazer cursos para se preparar para esse momento. Mas haverá uma hora em que você vai precisar dar esse salto. E, quando o receio ou a incerteza apertarem, lembre-se de fazer a pergunta mais acertada: “O que (o trabalho, a carreira) está conversando com a minha alma agora?”. O quê?
Os comentários são exclusivos para assinantes da Vida Simples.
Já é assinante? Faça login