As mil e uma formas de amar os livros: qual é a sua?
Anotações, grifos, apegos e outras intimidades tornam os livros tão nossos quanto os amores vividos, revelando um pouco mais sobre quem somos
Leitor é um criadouro de manias. Com você não deve ser diferente. Quem sabe amar os livros e o preza como companheiro de vida acaba arrumando um jeito próprio de se relacionar com esse objeto mágico. Como, por exemplo, jamais pular as orelhas e se embrenhar no prefácio. Ou grifar apenas com lápis – e olhe lá. Também vale caprichar nas dedicatórias, cheirar as folhas espremendo os olhos, nunca envergar uma brochura.
Conheço gente que não agarra uma obra se não tiver caneta na mão. Impossível avançar sem essa conversa que vai sendo tecida à medida que as anotações vão ocupando as frestas brancas, cravando parênteses aqui, erguendo pontes ali.
Grava-se à mão o eu daquele tempo para, quem sabe, adiante, abrir na tal página e se espantar: “Eu pensava, sentia, intuía dessa forma?”.
A necessidade de alguns, entretanto, põe outros em aguda aflição. “Anoto de jeito nenhum nada nos livros”, enfatiza o escritor Evandro Affonso Ferreira, que lançou há pouco o romance Rei Revés (Record).
Ele prossegue com os vetos. “Não dobro as extremidades da página, como muitos fazem, quando deixam o livro para ser retomado mais tarde: lanço mão de marcador de páginas.”
Leitor exigente, Evandro atuou como livreiro por bastante tempo. Arquitetou os sebos Sagarana e Avalovara, em São Paulo, onde se achavam obras de fina leitura.
Como ele graceja: “O pior que tinha nas estantes era Borges”. É de se supor que amasse a convivência com exemplares vividos. “Lidei anos com livros usados. Mas, curiosamente, prefiro amar os livros novos: alergia à poeira, ácaro etc.”.
As manias, rituais e outras loucuras dos leitores
Também há por aí, ao menos na ficção, gestos nada convencionais. No filme A Livraria (2017), um personagem enclausurado, que passa os dias lendo, lendo, lendo, tem um costume, literalmente, incendiário.
“Ele imaginava que os livros que devorava de manhã até a noite não tinham sido escritos por seres humanos, mas surgido por geração espontânea. Nada o incomodava mais que os retratos dos autores, muitas vezes incluídos em algumas edições”, nos conta a narradora.
Então, o vemos contrariado arrancando capas adicionais e as arremessando na lareira de sua velha casa. E aquelas pessoas que não emprestam livro nem para compadre? Poderia entregar várias.
E as que o fazem e depois se arrependem quando a ciumeira espeta o juízo? O psicoterapeuta Thomas Moore foi visitar um amigo e, pimba, avistou um livro de estimação no endereço alheio.
“Senti-me bastante comovido vendo-o na estante de outra pessoa, e não sabia se devia pedi-lo de volta ou superar o ciúme”, desabafa em A Alma do Sexo – Cultivando a Vida como um Ato de Amor (Ediouro).
Essa reação, ele esclarece, tem muito mais a ver com Eros, deus do amor na mitologia grega, do que com o conceito de propriedade.
“Nem sempre esse é o termo adequado para o relacionamento entre coisas e pessoas. Em muitos casos, somos companheiros, e as coisas parecem me possuir tanto quanto eu as possuo.”
Talvez isso explique o porquê de se deixar uma flor entre as páginas até ela se amalgamar ao papel.
As diferentes maneiras de se amar os livros
Ler um livro é mais do que percorrer os olhos sobre as letras. É, por vezes, firmar afeto que perdura até quando o livro acaba
Pertencente a uma família bibliólatra, a escritora Anne Fadiman suspira no mesmo tom de Moore. “Da mesma forma como existe mais de uma maneira de se amar uma pessoa, há mais de uma também de se amar os livros”, ela decreta em Ex-Libris – Confissões de uma Leitora Comum (Jorge Zahar Editor).
Anne identifica tanto o amor platônico, que preserva os exemplares em redomas apartadas da vida comezinha, quanto o amor carnal, físico, afeito a manobras diversas.
Nessa categoria, ainda se inclui o prazer de permitir que nossos queridos se hospedem na mesa de cabeceira de outros amantes.
“Não costumo exatamente marcar ou rabiscar livros, às vezes dobro páginas ou coloco post-its. O meu amor carnal se revela mais no desapego. Empresto, dou, esqueço. Acho que o importante é fazer o livro circular”, declara a editora Lizandra Magon de Almeida, fundadora da Jandaíra.
Gerando platonismo entre amantes de livros
É curioso como, mesmo as mais radicalmente carnais, em algum momento, se refugiam na redoma do platonismo. Como é o caso da escritora Aline Bei, que acaba de lançar seu segundo romance, Pequena Coreografia do Adeus (Companhia das Letras).
“Quanto mais eu gosto, mais eu aperto, rabisco, anoto, dobro páginas. Levo para todos os lugares. Gosto de colocar em cima da mesa enquanto tomo um café e observo rostos desconhecidos olhando a capa com interesse”, ela admite.
Um título dentre todos, entretanto, repousa imaculado em sua estante: Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar. “Eu o amei e ainda assim não pude tocá-lo, tamanha grandeza.”
“O máximo que fiz foi respirar muito perto das páginas. Me lembro também de ter abraçado a capa no final”, derrete-se a escritora Aline.
Todo escambo vale a pena
Já Tarcila Tanhã não se contenta em grifar, anotar e dobrar páginas. A atriz e criadora do canal Vra Tatá, onde apresenta resenhas e realiza performances poéticas, ainda fotografa trechos ou os transpõe para cadernos ou para a lousa que tem em casa.
Ama, sobretudo, ouvir o som das palavras. “Tenho para mim que quando um livro é gostoso de ler em voz alta é porque ele é incrível”, observa.
Tatá empresta, doa, troca, faz o escambo que for para saciar a leitora fisgada na infância. “Os livros têm a ver com partilha, com soma, com ampliar minha possibilidade de leitura do mundo e das pessoas”, examina.
Quando o isolamento social escancarou as páginas de dentro, volumes inéditos e antigos amores se amontoavam nas prateleiras dela.
“Nesse último ano de pandemia, os livros me salvaram em muitos momentos. Foram divertidos, engraçados, foram leves e poéticos, foram inquisidores e me fizeram pensar. Eu pude suprir inúmeras faltas por meio das histórias que estiveram comigo.”
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RAPHAELA DE CAMPOS MELLO é jornalista e se flagra paquerando as lombadas dos livros enfileirados em suas prateleiras brancas.
Conteúdo publicado originalmente na Edição 231 da Vida Simples
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